segunda-feira, 23 de maio de 2011

Menos que um def-ghi







Ditado é um exercício peculiar de auto-engano. Forte, como todo modelo bem-sucedido. Bem-sucedido porque impõe seus próprios termos, o que em nada tem a ver com o suporte ao melhoramento da espécie humana, dado que isto é coisa bem diferente. Daí vem alguém e lhe diz “almoxarife”. Mas o que a pessoa diz, em geral a pessoa é professora, é “Ahn..., bem, alll... mooo... xaaa... riii... feeee...” e, como que por sedução aprendemos a escrever com um incompreensível corte de vogais. E está feito o exercício. Não importa muito a extensão e a audiência do ditado. Ele só se transforma quando atinge a dimensão do dístico, o que mostra que, por fim, o primeiro plano da vida adulta é o auto-engano, o que permite que se finja sentir a dor que deveras sente. Se em cavalo dado não se olham os dentes, antes um passarinho na mão do que dois voando. E finalmente o ritmo faz parte do ditado, e é enfim como se diz. A coincidência toma parte, não segundo as regras impossíveis do acaso, mas da sincronia e da sintopia; a convergência; a conjunção. Assim. “Almoxarife”, tal como dito na confirmação do que fora dito com vagar, na voz que tartamudeia, confirmando ao ouvinte que ele de fato está a ouvir algo e que, para marcá-lo bem é preciso dizer outra coisa, diferente, a mesma coisa. O ditado precisa de um ponto de fuga, é necessário saber olhar para o outro lado. Para um outro lado.





Por exemplo: def-ghi. O termo designa disparidades e contradições. Juan José Saer, ao prosear em O Enteado, aponta para a palavra (sic) que, repetida para o narrador por diversos indígenas vermelhos em seu romance de viajante perdido na descoberta das Américas, diz um monte de coisas sem que seja excessiva, isto é, sem que tenha perdido distinção e nada mais exprima. Assim, def-ghi diz respeito a: 1) pessoas ausentes ou adormecidas; aos indiscretos que, ao visitar a casa de outrem, demoram-se excessivamente; 2) pássaro de bico preto e plumagem amarela e verde que, quando domesticado dava-se à repetir as palavras das pessoas para regozijo da aldeia, feito um papagaio; 3) objetos de alguém que substituem o mesmo numa dada reunião, cumprindo inclusive o papel de comensal; 4) o reflexo na água; 5) coisa que dura; 6) criança que, ao brincar com as demais, separava-se para interpretar uma personagem; 7) pessoa que ia espiar os inimigos. O sobrevivente de uma nau que atingiu a costa americana de quando do século XVI, e que fora conduzido pela população autóctone até o seio da aldeia de forma demorar-se o suficiente para aprender a língua, ou parte dela e, como sói aos antropólogos, sempre de forma risível e que, invariavelmente está lá junto aos inimigos de seu povo. E nenhum dos termos destacado, e todos em consonância, permitindo ao narrador falar, basicamente sobre aquilo que falavam para ele, e sobre ele a cada momento quando repetiam, apontando-lhe o dedo: def-ghi.
O narrador que, já tendo retornado de forma a marcar o momento no qual a prosa é destilada, encaminha o encerramento já sob o efeito das notícias do fim dos índios que lhe fizeram def-ghi e que, numa só palavra lhe forneceram um relato inteiro. E então, após já dar sinais desse juízo por antecipação, arremata: “Como eles eram o único sustentáculo do exterior, o exterior desaparecia com eles, apartado, pela destruição daquilo que o concebia, na inexistência. O que os soldados que os assassinavam nunca poderiam chegar a compreender era que, ao mesmo tempo que suas vítimas, também eles abandonavam este mundo. Pode-se dizer que, desde que os índios foram destruídos, o universo inteiro ficou derivando no nada. Se esse universo tão pouco seguro tinha, para existir, algum fundamento, esse fundamento era, justamente os índios, que, entre tanta incerteza, eram o que se assemelhava mais ao certo.(...) O céu vasto não os cobria, mas contrariamente, dependia deles para poder desdobrar, sobre essa terra nua, sua firmeza raiada.” .
Igualmente def-ghi, em uma situação em que a extensão do cosmos é o da intimidade, o que explode um no outro, Karen Blixen abre seu jogo, o tabuleiro povoado de acácias de sua Fazenda Africana dizendo, mais à forma de uma administradora, exatamente algo que coincide: “Em geral, eu e Nairóbi mantivemos excelentes relações e, certa vez, ao atravessar de carro a cidade, não pude deixar de pensar: Sem as ruas de Nairóbi, o mundo não estaria completo”.




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