SURIN, Jean-Joseph (1963). Guide spirituel pour la perfection. Paris. Desclée de
Brouwer.
Um livro para conduzir a
vida interior rumo à perfeição. Antes de
tudo, cabe anotar a vida interior, ambiente aonde tudo deve se dar, num
movimento explícito de separação e intimação da intimidade. Contemplação,
possivelmente trazendo à vida em sua marca possível os elementos disponíveis na
filosofia de Plotino. Eu realmente não sei. Este é um ambiente novo, devo
confessar, sobre o qual devo ter lido meia dúzia de capítulos, quase todos eles
escritos pelo mesmo historiador e teólogo que estabeleceu o texto que leio
nesta edição, Michel de Certeau, o mesmo autor de
La fable mystique, livro que servirá de guia para tudo o que
poderei escrever por aqui. A mística católica, até aonde sei, é um universo. Em
grande parte atacada e dissolvida por aquilo que frequentemente eu, na mais
profunda ignorância, chamo de
desencantamento,
o movimento que diz respeito a esta zona de empobrecimento do imediato na
relação com a Providência e o Amor. Ainda que a preguiça faça menção mais
costumeira ao investimento ético protestante, a mística também sofre forte
impacto causado por golpes racionalizantes dentro da igreja. Não digo que isto
seja novidade, pois não é. Basta rememorar o que Weber anota sobre
racionalização da teologia e instituição católicas (bem anotadas por Antônio
Flávio Pierucci; Ronaldo Almeida me chamou a atenção para isto) e
historiografia de Keith Thomas sobre o declínio da magia que cumpria parte
significativa do universo simbólico-efetivo da vida cristã (e o artigo de Oscar
Calavia Sáez foi quem me chamou a atenção isso anos antes de vir a me dedicar
ao tema). Entendo que esta não é uma bibliografia exaustiva, longe disso. Mas
ela é suficiente para que eu mesmo não me engane, não estou viajando por mares
nunca dantes navegados. A bem da verdade, qualquer anotação que eu venha a redigir
poderá, na melhor das hipóteses, ser o registro de minha iniciação na reflexão
sobre a mística que, assim como venho fazendo com o espiritismo, compreende
numa atividade pedagógica na qual eu faço o que me pedem para fazer com vistas
em me responsabilizar pelos resultados. É então que leio no final do prefácio
de De Certeau o que Nicolas Grou, emérito contemplativo do século XVIII francês,
escreveu sobre o
mode d’emploi
deste livro, que transcrevo porque é o que farei:
“Quant à vous, si la lecture du Père Surin
vous plaît, si vous prenez goût, je regarde cela comme une des plus grandes
grâces que dieu puisse vous faire. Ses ouvrages vous apprendront en quoi
consiste le vrais service de Dieu, la solide spiritualité et cette vie
intérieure qui doit être l’âme de notre conduite. Vous me pourrez suivre de
guide plus sûre et plus éclairé. Lisez-le lentement et, en quelque sorte, à
long traits. Suspendez de temps en temps votre lecture pour donner lieu aux
réflections et aux impressions de la grâce. »(1963 :61).
Ainda que atendendo a enunciados e
premissas morais completamente diferentes, a recomendação é semelhante à que
faz Roland Barthes com relação à máximas de La Rochefoucauld. Obviamente
entranhado nas questões da estética e do prazer do texto, o que entra em
questão é a chave de leitura que faz com que La Rochefoucauld seja o moralista
interessante e o escritor aborrecido. E há um momento ótimo da manipulação da
leitura, uma máxima moral por vez, com vistas em absorver o impacto da coisa
escrita que, se diluída em uma leitura contínua lhe obriga a se perder em
orientações sem saber sequer para onde se está indo. Orientação é coisa que se recebe
aos poucos e, mais do que qualquer outra coisa, é o que se recebe quando é
matéria da busca.
O QUE É A PERFEIÇÃO?
Premier partie – Où sont traitées les
choses qui concernent la perfection en général.
A leitura começa cínica. Não à moda de
alguém dedicado ao estoicismo, mas a um leitor reducionista que logo sou. A
perfeição – antes de buscar refletir sobre o que é a Perfeição – é fruto de um
caminho árduo e penoso. E nisso a Queda se envolve por uma idéia de hábitos e habilles, haillons que envolvem a vida mundana naquilo que deve ser mudança
radical daquele que virá a se dedicar ao Amor de Deus. Se há algum eco da
teologia tomasina aqui, da qual nada conheço, podemos encontrar na via dolorosa
da santidade que é se entregar na via da perfeição, exatamente porque ela é
contrária à nossa natureza caída – e o é diferentemente em cada estado em que
essa natureza se concretiza produzindo habitus,
ou segundas naturezas. Sabendo haver uma única e mesma natureza humana, a
soteriologia descrita por Surin aponta para aproximações que fazem daquele que
buscam a vida na perfeição diferenças, digamos, de posição com relação à mesma
perfeição. E isso em nada implica alterações com relação à natureza corrompida
que faz com que o caminho da santidade seja sempre difícil e doloroso porque
ele contradiz a natureza corrompida da humanidade. Ainda assim, e esta é a
razão que permite que um manual como esse possa ter sido escrito, há coisas a
fazer que aproximam a humanidade da graça. Há coisas a fazer, há caminhos. Não
há garantias, tampouco métodos. Mas se a santidade é doce e agradável, sabemos
porque ela fere a natureza que logo somos, que nos é devida. A todo o momento.
E o guia deve ser, antes de mais nada, a orientação pela perseverança. Particeps in tribulatione et regno, em
Apocalipse de João (1,9).
Não menos importantes são as figuras que
introduzem ao reino da dor e, mais do que isso, ao desconforto frequente que o
caminho da santidade deve causar. É
como fazer adentrar um pobre que se encontra logo à porta e lhe oferecer uma
nova roupa em um dia frio. Vestir-se com a nova roupa demandará se desnudar. Há
o frio entre um velho e um novo hábito. Como entre os hábitos mundanos e os de
santidade, cujo intervalo queima a pele. Mas a distinção, como quero mostrar
não se dá por uma via qualquer. O exemplo do selvagem do Canadá é suficientemente
claro para dizer que há posições com relação à santidade – ainda que um ato
pura e simplesmente possa fazer ruir esta diferença, porque a danação espreita
com um predador trazido pelo vento. A cena é a de um jovem selvagem que, levado
para a corte, coube então vesti-lo,
então cobri-lo de novos e melhores hábitos. Nos termos de Surin,
“S’il y avait quelque jeune enfant venu du
Canada, nourri avec les sauvages et habitué à une forme de vie toute sauvage,
qui néanmoins fût d’un beau naturel, il se pourrait faire qu‘un roi, voyant ce
beau naturel, dirait qu’il se veut servir de cet enfant et l’avoir en sa cour.
Il donnerait charge à quelque habile courtisan de le former et élever en
telle sorte qu’il lui pût être agréable. Il est certain que cet enfant, au
commencement et durant un long temps, aurait une grande peine. Ce courtisan qui
lui aurait été donné pour maître, ne pouvant supporter ses façons de faire
grossières, lui donnerait une grande g6ene et affliction, d’où arriverait que
cet enfant serait souvent tenté de se dérober et de s’en retourner en son pays,
comme vous avons vu un, en France, qui avait les livrées du roi, traité et
nourri comme un domestique du roi ; néanmoins on le out jamais tenir qu’il
ne s’en retournât à son ancienne façon de vie sauvage, si bien que depuis,
retourné au lieu de sa naissance, mémoratif de ce qu’il avait appris, [il]
retournait au quartier des Pères qui l’avaient baptisé, se confessait et
communiait, puis retournait à sa façon de vie qu’il ne pouvait oublier. » (1967:68)
As vestimentas e os hábitos da corte lhe servem
de polimento – exatamente porque é de hábito que a corte demande um
comportamento polido – que, de qualquer maneira, demanda um comportamento
contrário àquele que lhe é natural. A relação com a corte, aqui, merece o tipo
de caução analítica que encontramos em trabalhos como os de Norbert Elias e de
Roger Chatier na medida em que os hábitos de corte, especialmente já na altura
do século XVII, se compunham de uma face difícil de digerir que diz respeito ao
cultivo da hipocrisia quando os assuntos relativos à manutenção da persona
cortesã se encontrava em jogo. Ainda que em nome da mentira, muitas vezes, os
hábitos cortesãos – que são um exercício de poder-fazer – se alinham com uma
premissa catequética, esta, no caso, sem se alinhar com a conduta de fato. Negar
a natureza e afastar-se do estado da Queda, que é o estado originário, parece
ser um fundamento bastante fluido a ponto de servir como elemento introdutório
para um guia espiritual para a perfeição. Como disse, as observações começam cínicas, eivadas de sociologia. Não
sei se isso terá função.