terça-feira, 18 de março de 2014

Século

Na querela dos Antigos e Modernos
                         e se, como partidos,

os Antigos fossem do Significado
os Modernos, do Significante


e

por si só

Direita e Esquerda não fossem sentido
apesar do desejo de monopólio,
de serem pura preeminência?

terça-feira, 11 de março de 2014

Notas desde atrás do muro: os espaços da fé e território como problema de teologia política.


3-

            Esses “caros desaparecidos” que domesticamos nas fachadas do pensamento, envidraçados, isolados, maquiados e oferecidos assim à edificação ou destinados à exemplaridade. E então os vemos escapar de nossa empreitada. Eles se transformaram em “selvagens” na medida em que sua vida e obras apareceram mais estreitamente ligados a um tempo passado. Tal mutação do “objeto” estudado corresponderia mais adiante à evolução da pesquisa que veio a ser, pouco a pouco, “histórica”, pois isso que caracteriza um trabalho como “histórico”, isso que permite dizer que se “faz história” (no sentido em que a “produzimos” como em uma fábrica de automóveis), não é a aplicação exata das regras estabelecidas (ainda que este rigor seja necessário). É a operação que cria um espaço de signos proporcionados a uma ausência; que organiza o reconhecimento de um passado, não à maneira da possessão presente de mais um conhecimento, mas sob a forma de um discurso organizado para uma presença ausente; que, para o tratamento do material então disperso em nosso tempo ofereça lugar na linguagem e remeter à morte.” (Certeau, 2005:47)
           
            Não é difícil encontrar a relação íntima entre os fragmentos de teoria da história de Walter Benjamim e o tempo saturado de “agora” e a conformação do lugar do outro na história defendida por Michel de Certeau. A vida mística de Jean-Joseph Surin, exorcista jesuíta responsável pelo caso de Loudun no século XVII, é reconstituída como a figura de Paul Klee, Angelus Silesius. O silêncio da mística é posta em par com a acídia, com a empatia com a derrota de uma frente e que, ainda que derrotada, segue combatente. Se o primeiro excurso se deu às voltas com a perseguição heresiológica, o segundo movimento tem como alvo o discurso místico, aquele que diz o indizível e que, respeitando a história da instituição católica, é aquele que, todo o tempo, é quase herético[1] - quando não herético integralmente. Não cabendo condenar a condenação, a historiografia deve zelar para uma dimensão importante, a que pergunta “o que foi que aconteceu?”. Recuperar a dimensão polêmica da mística, no caso, é abrir espaço para uma nova articulação dada em um lugar em que a condenação não se dê restituindo à ação jogada às ruínas uma gama de sentidos possíveis – sua contingência de um tempo presente.
Angelus Silesius, de Paul Klee, a reunião impossível em um outro lugar.
            O caso é que Surin foi esquartejado. Não fisicamente, como se deu com Urban Grandier. Surin foi esquartejado em arquivos diversos num percurso editorial que para merecer a marca de labiríntica seria conceder ao desenho uma marca geométrica irreal. Não há nada que nos lembre o piso da catedral de Chartres aqui, porque as linhas são interrompidas, os percursos feitos em saltos e os escritos dispostos numa ordem que respeita mais o sigilo editorial de diversas gavetas de guardados do que uma estante temática de uma biblioteca. A unidade é garantida, mas incomunicável porque não fala a nossa língua, mas a dos anjos. A história por sua vez dispersa aquilo que de outra forma seria unidade e Michel de Certeau reuniu por uma década a dispersa editorial que acolhiam os escritos de Surin vindo a publicar, então, suas correspondências, seus exercícios espirituais (Guide de la Perfection) e o registro de suas atividades como exorcista. O trabalho é cuidadosamente reconstituído no primeiro volume de La Fable Mystique em que os arquivos e as edições de seus trabalhos são cuidadosamente elencados na abertura do último capítulo do livro. O que vemos nesta história, que é também a história da mística em uma versão microcósmica – ou monadológica – é a história de um homem arruinado, isto é, posto em ruína em que tudo o que lhe faz restar são escombros de papel redigido. Mas o caso da mística, assim como o as considerações sobre a heresia, oferecem um conteúdo a mais nesta história. O discurso místico fará as vezes de fala selvagem, uma das quais preenchem as lacunas da experiência que a temática do progresso insiste em anular.
            Surin não será, contudo, um cristão exemplar. Michel de Certeau, quem seguramente conhece muito bem a economia da exemplaridade tem a diferença histórica em outra conta. Vê nos cristão de outrora a unidade do cristianismo ainda que ao confrontá-los, não se reconheça neles. E aqui a mediação da linguagem é, toda ela, um problema a parte. E especial. Porque se trata da mística que é a arte de dizer escondido – ou de não dizer, de gaguejar, de transpirar a experiência.

            O problema da linguagem constitui um dos grandes debates literários, filosóficos e religiosos do período atravessado por Surin. Ele organiza sua obra em uma dialética da língua (sistema que definira e ocupa todo o campo do mundo) e da linguagem de Deus (a experiência espiritual que a “língua não pode exprimir” e que “não pode ser nomeada”). Em Surin não se instaura nenhuma linguagem acerca da verdade – posta ao lado do que é mundano. Somente um “estilo”, uma maneira de falar pode articular sobre a “língua” (esse dado prévio e universal) a “linguagem de Deus” (um corte): as “feridas” do espírito marcam na língua, progressivamente, seu estatuto de ser despossuído de seu Outro sem substitui-lo por qualquer outra coisa que lhe fale diretamente.” (2005:46)

            Em outras palavras, o discurso místico dificilmente disse algo que não seja sua forma de dizer. Porque, aproximando-o de um jargão epistemológico só se trata de linguagem positiva quando a linguagem é outra, de uma instância completamente Outra, Estrangeira em sua forma radical. Quando articulada na língua em que a história se efetiva, é pura negatividade perfazendo a curva assintótica que Thomas Csordas[2] tenta recuperar em suas diversas incursões etnográficas no universo da cura, tanto carismática quanto xamânica, o ponto no infinito em que a curva da língua dos homens se cruza com a curva da língua dos anjos num exercício que não se cansa de clamar pelo suporte de William Blake. O trabalho historiográfico, aqui, não é o de coleta de fontes, mas do exercício criativo de correlacionar e se relacionar com
aquilo que resta de Outrem. Não sendo um esforço de folclorizar o tempo alheio, é uma forma de restituir ao presente uma outra fonte passada fazendo do presente, ele mesmo, uma nova forma de relação.

            Não se pode então reduzir a história à relação que lhe entretém com o desaparecido. Se ela não é possível sem os “acontecimentos” dos quais trata, ela resulta ainda mais em um presente. Com relação ao que se passou, passado, supõe então uma lacuna que é o ato mesmo de se constituir como existente e pensante, hoje.” (op.cit.49)

            O campo da mística é um campo em que a dimensão da experiência se põe de forma radical porque intangível. É a expressão do tempo vivido em que nenhuma homogeneidade próprias às vulgatas do iluminismo, ou mesmo a concepção de tempo profano de Eliade e Guénon podem aceitar porque a dimensão do acontecimento é um obstáculo para a noção da continuidade. A primeira frase do14º fragmento da teoria da história de Walter Benjamim antecipa aquilo que será a raiz do discurso historiográfico de Michel de Certeau, a de que a história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de “agoras” (Benjamim, 1996:229) em que a correlação é a oferta de um lugar sem que, assim, o historiador fale no lugar de Outrem.
           
           
           


[1] O caso de Mestre Eckhart é ilustrativo. Místico de primeira grandeza foi alvo de processo inquisitorial em 1326 pelo arcebispo de Colônia, Henrique de Virneburg. O franciscano condena 126 proposições de autor de Da divina consolação. A acusação de heresia nadou no paroxismo próprio da expressão da mística. Eckart vai à Avignon no ano seguinte apresentar seu protesto. Em 27 de março de 1329 o Papa João XXII condena 28 das 126 proposições por terem se aproximado demasiadamente de fabulações vindo a terminar a causa com o seguinte dispositivo: “Nós... expressamente condenamos e reprovamos os quinze primeiros artigos e os dois últimos como heréticos e os outros 11 citados, como mal soantes, temerários e suspeitos de heresia, igualmente os opúsculos do mesmo Eckhart que contenham os referidos artigos e alguns deles.” (Eckhart, 1999:27, introdução de Leonardo Boff, grifo meu). Ao lermos os escritos de ciência experimental de Jean-Joseph Surin, vemos que o jesuíta que conduziu o exorcismo das irmãs ursulinas de Loudun quase teve a mesma sorte.
[2] http://cilas.ucsd.edu/_files/faculty-cvs/csordas_thomas.pdf

Notas desde atrás do muro: os espaços da fé e o território como problema de teologia política.


2-

            Palmira. Berlin. Paris. Não importa grande coisa se o que resta, quando resta são ruínas. A Queda da Bastilha deixou, além de parcos tijolos escondidos por vigas que ergueram a Ópera erguida sobre uma estação de metrô, uma história símbolo da tomada de poder popular que abre os trabalhos da Revolução Francesa. Berlin, ensina Paul Virilio em Guerra e Cinema, fora reformada pela arquitetura nazista para que, ao ser derrubada por bombardeios dos Aliados contra o Eixo viesse a contar uma certa história de grandeza – uma arquitetura baseada na grandeza da decadência de Atenas e Roma. Palmira guarda na voz fantasmática do gênio que visita o narrador de Les Ruines a biografia dos excessos e, portanto, dos erros dietéticos de uma civilização vindo a contar a história de todos os equívocos, passados e futuros, da política humana. A lição da história é que ela é o trato daquilo que resta, o que sobra, em contornos documentais cujo arranjo não é da outra ordem senão o da ficção – é da ordem do feito. Fetiche. E que se entenda que em nada tem a ver com o fato, de que por ventura seja verdade. Tem a ver com o que resta. No caso, resta pouco da salvação e sua história, a heilgeschichte.

            Conhecemos a história de um autômato construído de tal modo que podia responder a cada lance de um jogador de um xadrez com um contralance, que lhe assegurava a vitória. Um fantoche vestido à turca, com um narguilé na boca, sentava-se diante de um tabuleiro, coloca-o numa grande mesa. Um sistema de espelhos criava a ilusão de que a mesa era totalmente visível, em todos os seus pormenores. Na realidade, um anão corcunda se escondia nela, um mestre no xadrez, que dirigia com cordéis a mão do fantoche. Podemos imaginar uma contrapartida filosófica desse mecanismo. O fantoche chamado “materialismo histórico” ganhará sempre. Ele pode enfrentar qualquer desafio, desde que tome a seu serviço a teologia. Hoje, ela é reconhecidamente pequena e feia e não ousa mostrar-se.” (Benjamim, 1996:222)[1]

            Interessante notar que Walter Benjamim advoga pela feiúra da teologia e, sendo um comentarista partidário da ode ao feio de Charles Beaudelaire, acaba por tecer o seu elogio. O comentário à frase de Rudolf Hermann Lotze, de que é admirável que mesmo individualistas conseguimos não sentir inveja do futuro parece retomar as bases do que Ernst Bloch chamará de princípio da esperança em que a salvação se desloca para algo mais adiante, como felicidade ainda que adiada. A teologia insiste em não abrir mão de coisas que a fazem falar baixo, no canto da sala. Ela, contudo, segue sugerindo. Ela orienta. Resta saber se a história que não mais se dedica a salvação em primeiro plano saberá ainda receber lições para a condução das almas ou, pelo menos, para seguir ouvindo a sua voz e compreendê-la com tristeza de quem compadece pela derrota. Acídia.
            Compadecer pela teologia não implica, contudo, em aderir à eclesiologia mas sim em tratar a história do espírito como uma voz ainda viva, mesmo que soterrada pelo entulhamento produzido tanto por ela, soerguida em ordens de catedrais, quanto pela delação e violação dos espaços que outrora foram seus. A revolta armada do braço contra a cabeça, diria a defesa do Corpus Mysticum paulino, que faz com que os braços tenham ilusões cerebrais. A delação, por sua vez, se entulha na forma de progresso, exatamente contra o qual é preciso dar atenção, uma vez mais, aos rumores que reclamam pela voz dos anjos. Porque o progresso é o braço secular com delírios de nobreza.


[1] http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,vagao-fantasma-roda-sem-condutor-em-sao-roque,1139284,0.htm

segunda-feira, 10 de março de 2014

Notas desde atrás do muro: os espaços da fé e o território como problema de teologia política.


CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Forense Universitária. Rio de Janeiro.
1982.
________________________. Le lieu de l’autre : histoire religieuse et mystique.
Gallimard/Seuil. Paris. 2005.
KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise : uma contribuição à patogênese do mundo
burguês. Contraponto. Rio de Janeiro. 1999.
RIGAUX, François. A lei dos juízes. Martins Fontes. São Paulo. 2003.
FOUCAULT, Michel. Segurança, território e população. Martins Fontes. São Paulo. 2009.

            Talvez seja importante lembrar que no mesmo período em que o artigo que serve de capítulo de abertura de Le lieu de l’autre, Michel de Certeau publicava seu L’écriture de l’histoire, publicado no Brasil em 1982. O que o artigo em questão desenvolve, assim parece, ou retomam aquilo que é o propósito do livro de 1975 ou, de outra forma, aprofundam temas que foram abordados de forma demasiado sumária. A seção sobre a heresia e a redistribuição do espaço que serve de abertura para Le lieu de l’autre serve como nota daquilo que parece cumprir uma etapa da reflexão do historiador jesuíta no qual se lê o desenlace da territorialização da fé – um capítulo da história do cristianismo extremamente fecundo, igualmente posto como elemento central nas sociologias de Max Weber e Ernst Troeltsch e na historiografia de Ernst Hartwig Kantorowicz. No caso de Weber é desnecessário citar a recorrência do problema da dominação como conformação ética e jurídica do balanço entre autoridade e poder político, fartamente discutidos em uma seção considerável de Economia e Sociedade, para não dizer em outros tantos trabalhos do mesmo, inclusive os de teor propriamente metodológico. Troeltsch, ainda que menos comentado, é responsável por um tratado em que o que encontramos é fundamentalmente uma sociologia da história institucional da igreja católica e o papel fundamental das igrejas territoriais (landeskirchen) na formação da cristandade, particularmente no medievo posterior de quando das ameaças oriundas da pressão geopolítica do islã, por um lado e, de outro, a emergência dos principados protestantes já na emergência do Renascimento – tratado complementado pelos seminários sobre protestantismo e modernidade. Por sua vez Kantorowikz é responsável por uma historiografia da metáfora dos dois corpos do rei sendo o segundo a representação da continuidade da Coroa na forma de uma pessoa imortal e co-extensiva ao território, este lido como análogo ao Corpus Mysticum do corpo eucarístico cristão que, não menos importante, tem no fisco uma das formas essenciais de sua manipulação (The King’s Two Bodies).
            Os capítulos desta história podem ser estendidos para o ensaísmo de Arthur Versluis, os trabalhos seminais de Carl Schmitt e Hans Blumenberg, e a historiografia dos dispositivos de perseguição de Bob Ian Moore. Contudo seria ocioso, e eu incapaz de levar adiante o esforço em ser exaustivo na apresentação de uma bibliografia em que seja posta a questão da organização política da fé como um problema de instituição do espaço, a formação dos termos de conciliação dos povos irmãos e a definição do lugar do outro, tema que dá nome à coletânea do livro de Michel de Certeau. Como historiador de Certeau está longe de ser um escritor convencional. A organização meramente cronológica das fontes não é suficiente para a crítica das mesmas, e sua prosa não se permite cair no engodo da anterioridade quando, no final das contas, aquilo que veio depois pode e frequentemente determina aquilo que o historiador coloca como origem histórica de algo. Mais atento ao que ele mesmo chama de deslocamento nos quadros de referência em uma especialidade particular da historiografia – história da religião na modernidade clássica europeia -, de Certeau se volta frequentemente para dois movimentos. O primeiro, aquilo que constitui o esforço integrativo da igreja ser a igreja não a despeito, mas por causa de suas diversas dimensões e contradições – o que é obrigatório quando se escreve desde o ponto de vista da Companhia de Jesus, tantas vezes colocada sob suspeição teológica. O segundo diz respeito ao objeto que chama a atenção do historiador francês, a saber, o arco narrativo da religião na era moderna:

            Para esboçar inicialmente esta trajetória de uma maneira global, e tal como se anuncia, pode-se dizer que os séculos XVII e XVIII mostram a história de um divórcio. Não que as relações entre “moral” e “religião” tenham sido harmoniosas ou fáceis anteriormente. Muitos trabalhos o demonstram: elas foram tempestuosas, nunca estabilizadas, por exemplo, naquilo que se refere à usura, à sexualidade e ao poder temporal[1], mas o princípio referencial de sua união não fora posto em causa. No decorrer da Idade Média, e ainda no século XVI, continua-se admitindo que a moral e a religião tem uma mesma fonte: a referencia ao Deus único organiza, em conjunto, uma revelação histórica e uma ordem do cosmo; ela faz das instituições cristãs a legibilidade de uma lei do mundo. A sociedade se articula nos termos de uma crença integrativa.”(1982:153)

            Aquilo que fundamenta a ordem jurídica dos espaços em modernização abandona critério católico/eclesiástico de jurisdição vindo a instaurar progressivamente outras formas de reconhecimento da legalidade e da correção de uma ação qualquer, assim como aquele que é passivo de um juízo ordinário a este respeito[2].

            Dito de outra maneira, a ética representa o papel antigamente outorgado à teologia. Uma “ciência dos costumes”, de agora em diante, julga a ideologia religiosa e seus efeitos, lá onde a “ciência da fé” classificou os comportamentos em uma subseção intitulada “teologia moral”, e hierarquiza as condutas segundo os códigos da doutrina. Desta evolução existem vários sinais: o primado epistemológico da ética na reflexão sobre a sociedade; a apreciação da religião segundo “valores” que não são mais os seus (o bem comum, a exigência da consciência, o progresso, etc.); a retirada da religião para as “práticas religiosas” ou o seu alinhamento com as categorias impostas por uma sociedade; a marginalização do culto com relação à lei civil ou moral; etc.” (op.cit.:154)

            Nos deslocamentos dos quadros de referência que não deixam de apontar para uma certa leitura de Michel Foucault e suas eras epistemológicas postas no território da prática mais vulgar, encontramos uma convergência entre o domínio temático que fornece o objeto empírico e o problema da ordem metodológica que discute a sua objetividade. Porque o que está em questão nos ensaios do historiador, neste período, não é a redação de sumas cronológicas mas sua problematização em seu afazer. Neste afazer de proporções metodológicas o tema da heresia – ou a redistribuição do espaço[3] - merece atenção especial não somente por ser a primeira seção do artigo, mas por ser um problema reincidente. No artigo sobre a formalidade das práticas é o deslocamento da ortodoxia – de teológica para uma ortodoxia legal-estatista – que propicia e condiciona a transformação da heresia em alteridade em que seja pesada a seu desvio propriamente social, conceito chave para a constituição de unidade contra a qual uma heresia deve atentar. A afirmação central das Luzes é a da legalidade e da inteligibilidade, afirmara Pierre Chaunu.  É a uniformidade da Lei como critério de união que a conversão da heresia deve se dar.
            Do ponto de vista metodológico que não abre mão ao menos da inteligibilidade, a heresia se apresenta como legibilidade doutrinal de um conflito social apresentada como forma binária, do mesmo tipo que outrora teria pautado debates como o que se dera entre David Maybury-Lewis e Claude Lévi-Strauss – do dual societies exist? No final das contas são dualismos, ou tensões duais em que o critério político é recuperado, aquele que define estar dentro ou fora da Igreja, ser ou não ser cidadão, estar incluído ou excluído do grupo – no que pese o paradoxo do soberano, o excluído que inclui. Assim, clérigos/burocratas (clercs) e sua leitura das práticas intelectuais e teológicas de devoção rurais no século XV; a clivagem entre Norte e Sul no século XVI no que tanjam as igrejas reformadas e a Reforma tridentina; o universo da querela dos Antigos e Modernos que se reflete tanto numa discussão diacrônica do progresso quanto a versão geográfica da sincronização do progresso, também atendendo pelo nome de colonização; são estes os elementos que Certeau considera determinantes para a proliferação da heresia que vai culminar, como vimos, em uma nova forma na qual a ordem eclesiástica perde o monopólio do ajuizamento e quem ajuíza é exatamente o corpo que outrora era somente o braço secular da cabeça eclesiástica, o Corpus Mysticum, cabeça e membros.
            A heresia se transforma em cisma exatamente porque a primeira, diluída nos conteúdos legais que não a reconhecem como tal mas sempre como outra coisa – de um ponto de vista histórico e institucional interessado. Igrejas assumem a face partidária e fidelidade e divergência religiosas se politizam em fenômenos de reinterpretação social (op.cit.:25).

            Os conteúdos permanecem, mas submetidos a um tratamento novo que, proposto pelos cortes perpetrados pelas cisões, apresenta-se mais tarde pela fórmula da gestão política das diferenças. Os móveis herdados são redistribuídos em um novo espaço que organiza uma outra maneira se os repartir e deles se servir. Sob esse prisma a cisma amarrota os dados, fisga o gesto político ou científico de reclassificar e de manipular. É um trabalho sobre a forma social – diferente e complementar ao da evolução que, em outro caso, muda os conteúdos ainda que sem modificar a forma social onde se dão os desdobramentos ideológicos.” (id.ibid.)

            O controle de manifestações como os da feitiçaria e mesmo a problematização emergencial da educação faz com que o movimento dos elementos constitutivos assuma sua clareza brutal de reforma das instituições, sendo uma delas obviamente a eclesiástica. Esta reforma que nos oferece um sentido muito mais radical e agressivo do que a mera remissão ao evento protestante tem, aqui, o papel de oferecer ao problema da gestão da diferença – uma variação particular de como encarar o governo de um território – o recorte dos lugares onde se darão as práticas e a manifestação da religião, isto é, da divergência perigosa. É o Ancien Régime, período em que o acirramento das querelas passa a ser mediado por um ator que é gerido pela Razão de Estado que tem por fim a qualidade de organizar as relações por critérios exógenos aos grupos que passam a ser tratados, enfim, como população (Foucault,2009:117-155). É neste território que as diferenças perigosas se transformam mais e mais numa questão de foro privado (Koselleck, 1999), ou seja, ajuizado pelos praticantes em sua associação particular fazendo assemelhar igrejas de associações esportivas pelo efeito da cláusula arbitral que exclui da competência jurisdicional aquilo que outrora fora reconhecido como hierarquia (Rigaux, 2003:17-21). Da ordenação do lugar público sob julgo do Estado, a ordenação particular das denominações em seus lugares de culto, em estabelecimentos da fé cujo  corte organizador circunscreve um campo apropriado na superfície do mundo. Mas que se entenda que o assunto é França e que a religião fracionada em privacidade incomunicável é a católica. Porque o movimento contrário, o de acirramento das diferenças perigosas, se dá na afirmação das diferenças ainda que em foro privado. Já é possível ao menos dizer.
             A escala desta discussão é, ainda assim, enorme e aparentemente divorciada das práticas – algo similar ao divórcio entre o religioso e o discurso moral. O divórcio se dá por uma espécie de holograma do tempo das instituições que projetam significantes como se seu significado estivesse dado na tradição e que a mesma fosse, por isso, sinal de estabilidade semântica. Como se a relação entre símbolos e seus afazeres fossem da ordem da fixidez, coisa que a história quantitativa de historiadores como Michel Vovelle só fizeram reproduzir em atentar que é preciso fazer com que a tradição faça sentido de novo, a cada ato. E que a tradição mesmo é uma operação deste tipo, aquela que faz viger de novo o Antigo; fazer dizer de novo o indizível; figurar mais uma vez o que se perdeu no tempo histórico na encenação da eternidade do mundo. É neste plano que a ambivalência do gesto se insinua sob a univocidade da cifra (2005:27). A recuperação das dimensões práticas é, por fim, o horizonte da prática historiográfica que se desdobra em escritura de textos: os que lê e os que escreve. Este pode ser, por sua vez, um gesto etnográfico por excelência do tipo follow the native, especialmente por percorrer o universo do silenciamento da religião e da emergência de dispositivos de dizer sobre aquilo que deveria permanecer ausente do discurso dado os riscos que oferece. Dito de outra forma, o registro escriturário daquilo que seria silêncio na comunicação presente.


[1] Aqui de Certeau cita John T. Noonan.
[2] Os trabalhos de Robert Mandrou sobre magistrados e feiticeiros no mesmo período, assim como os trabalhos de Claude Reichler sobre diabolia, comédia e libertinagem são exemplares na coleta da documentação que re-encena o divórcio da linguagem sobre a moral da linguagem religiosa. O que é certo e o que é errado prescinde de afirmações a respeito de Deus e mesmo, desde o plano enunciativo, de sua existência – como é o caso de d’Holbach.
[3] Certeau (2005:23-26).

quarta-feira, 5 de março de 2014

AInda não: crônica crônica de carnaval.


          Foi então que pisei fora de casa. Não dei a menor bola para os helicópteros sobrevoando a avenida Santa Isabel e mesmo ao som das primeiras explosões. Pirotecnia, ambos, da Polícia Militar e de foliões que sempre usam da sorte para explodir latinhas e assustar transeuntes. Afinal, aqui é terra em que se comemoram natais com fogos de artifício. Muitos, ainda que sem o acompanhamento de gritos desesperados perfazendo a melodia “filhos-da-puta” que, por fim, moveram-me do sofá. Que pese o fato de eu não estranhar mais sobrevoos de helicópteros policiais e de conviver com gente que explode coisas por diversão, como eu mesmo fiz na adolescência. A
tensão dos gritos estava alguns tons acima do desconforto habitual de morar em Barão Geraldo, Campinas.
            Esta que é uma ilha num mar de abjeção urbana, é ela mesma uma abjeção. Só é uma ilha porque perdura sua forma intangível de ser a Terra do Nunca que abriga a Unicamp, em que Nunca segue presidindo todas as atividades.  A mesma Terra do Nunca  com facções diversas de Meninos Perdidos que mal e porcamente povoam as ruas. Na verdade, não, porque voam não tocando o chão, overdose de toques de fada Sininho. Esta mesma ilha está pipocada de violações aos hábitos civis banais. Há um toque de recolher implícito que faz das ruas um ambiente deserto às 21 horas, toque este acompanhado pelas ruas escuras de uma iluminação tenebrosa que permitia às fantasias de vampiro de outrora, quando eu explodia coisas, a mais palpável verossimilhança. Quando adolescente, temido por quem cruzasse na rua – ainda que este fosse, em geral, ninguém. Minha mãe sempre temerosa, calculava o pranto na possibilidade de um acontecimento infeliz e, no entanto, nunca.
            Quando pisei fora de casa na madrugada de uma terça-feira de carnaval, ano de 2014, fomos invadidos pela força alheia. Vi carros atravessados na rua que me viu sair dos cueiros, não à forma irresponsável das oficinas mecânicas de interromperem a calçada irregular, mas nos contornos do desespero coletivo. Choro, raiva, trânsito interrompido. Tosse seca, algumas doloridas e outras tantas fingidas com o ofício daquele que não perde a oportunidade de participar da História. As fantasias já não importavam mais pois, assim se via, todos estavam nus. Todos? Olhei sobre o ombro direito. Parecia um milagre. Um acontecimento. Trinta sombras de escudo em riste e bastões intercalados com canudos de soltar projéteis. Andavam acuados por um enorme vazio em que as ruas, já depois das 21 horas, travestiam. Seguiam rumo à Av. J.B. de Oliveira, saindo da outra avenida, Santa Isabel, a mesma frequentemente visitada pelo som dos helicópteros em rasante. As trinta sombras, com ombreiras ovaladas, partes de corpo em brilho fosco do negrume das peças aconteciam ao som de bombas e marcha. O silêncio vinha de outra parte, era o samba quem havia calado.
            Do portão de casa até a Praça do Côco é uma caminhada de levar a avó. Coisa pouca para chegar em um terreno em que o que se dá, basicamente, são reuniões de fazer nada, o epicentro descontraído da Terra do Nunca. Uma ilha em uma ilha, o golpe parece ter atingido o pâncreas do eterno esconderijo produzindo tão e simplesmente a bile que sobra do cansaço do corpo após o envenenamento recreativo dos dias de carnaval. Os gritos de desespero e ofensa só faziam crescer na exata medida em que não somente o samba fora silenciado, mas colocado em uma escala negativa do canto roubado. Mais uma bomba de gás. Acompanho as sombras desde atrás, com uma distância saudável, a saúde de quem caminha olhando a nuca alheia. Viro a esquina da rua de casa, à esquerda, e sigo até a Praça do Côco, onde o derradeiro ambulante desmonta a parafernália devidamente esbaforido e revoltado. Porque não estava acontecendo nada que não fosse samba, foi assim que ouvi da boca dele, e que tudo o que se deu foram gás e balas de borracha. Um ou outro fantasma, vindo de outros momentos deste evento máximo, o primeiro, repetiam a ladainha que se assume ares de voz maldita, aquela que diz ter visto não saber o que aconteceu. Não importa por onde a história começa, não há quem afirme saber de onde veio o golpe.
            Foi o suficiente para me distrair - o que deveria ter servido de sinal, para eu não me enganar, não levar em conta a possibilidade de estar no mesmo evento em que eu pude contar 30 sombras. Naquilo que deveria ter sido o caos e o medo, parar e conversar com quem tinha muito o que perder em simplesmente correr. E distraído, perceber carro, equipamentos e mercadoria que serviram de âncora para uma dúzia de pessoas que persistiam em ficar na mesma praça que abandonariam minutos depois. Mas não havia mais ninguém além daqueles que, nas contas decisivas, eram os derradeiros. E no entanto, as sombras seguiam no exercício. Passos marcados e, logo mais, o som de sua própria verve percussiva. Bastões sorvendo os escudos da cadência interrompida para uma multidão ausente, dispersa sem nunca ter se aglomerado. Um curto ensaio musical chegando à zona de dispersão, 5 viaturas da força especial aguardando pacientemente sua ala sombria que agira no mais seguro anonimato da noite desabitada. Uma curta comemoração e então o preto fosco das peças duras cede ao tecido cinza de homens que partiam sem praticar o ofício policial de averiguar, investigar, reconhecer. Saíram de costas para dar a impressão de que estavam chegando, sem luz, sem som, sem sombra.
            Passei a madrugada em claro, contando e levantando detalhes, divulgando a boa nova de que não éramos mais a Terra do Nunca e que tínhamos quebrado com a maldição das facções. Os Garotos Perdidos poderiam voltar para casa. Mas diz a informação do ministro do alcaide que não, que nada, que nunca. Como antes. Os calos nos pés reforçados por minha sandália ruim são, por fim, uma história interrompida e já é tarde demais para reaprender a voar.
             Mas o que aconteceu?, poderia me perguntar o leitor. Com alguma tristeza sou obrigado a reconhecer que não aconteceu nada. Ainda não.