Na querela dos Antigos e Modernos
e se, como partidos,
os Antigos fossem do Significado
os Modernos, do Significante
e
por si só
Direita e Esquerda não fossem sentido
apesar do desejo de monopólio,
de serem pura preeminência?
terça-feira, 18 de março de 2014
Século
Postado por
Refrator de Curvelo (na foto do perfilado, restos da reunião dos Menos que Um)
às
09:52
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terça-feira, 11 de março de 2014
Notas desde atrás do muro: os espaços da fé e território como problema de teologia política.
3-
“Esses “caros desaparecidos” que domesticamos
nas fachadas do pensamento, envidraçados, isolados, maquiados e oferecidos
assim à edificação ou destinados à exemplaridade. E então os vemos escapar de
nossa empreitada. Eles se transformaram em
“selvagens” na medida em que sua vida e obras apareceram mais estreitamente
ligados a um tempo passado. Tal mutação do “objeto” estudado corresponderia
mais adiante à evolução da pesquisa que veio
a ser, pouco a pouco, “histórica”, pois isso que caracteriza um trabalho
como “histórico”, isso que permite dizer que se “faz história” (no sentido em
que a “produzimos” como em uma fábrica de automóveis), não é a aplicação exata
das regras estabelecidas (ainda que este rigor seja necessário). É a operação
que cria um espaço de signos proporcionados a uma ausência; que organiza o
reconhecimento de um passado, não à maneira da possessão presente de mais um
conhecimento, mas sob a forma de um
discurso organizado para uma presença ausente; que, para o tratamento do
material então disperso em nosso tempo ofereça lugar na linguagem e remeter à
morte.” (Certeau, 2005:47)
Não é difícil
encontrar a relação íntima entre os fragmentos de teoria da história de Walter
Benjamim e o tempo saturado de “agora” e a conformação do lugar do outro na história defendida por Michel de Certeau. A vida
mística de Jean-Joseph Surin, exorcista jesuíta responsável pelo caso de Loudun
no século XVII, é reconstituída como a figura de Paul Klee, Angelus Silesius. O silêncio da mística
é posta em par com a acídia, com a empatia com a derrota de uma frente e que,
ainda que derrotada, segue combatente. Se o primeiro excurso se deu às voltas
com a perseguição heresiológica, o segundo movimento tem como alvo o discurso
místico, aquele que diz o indizível e que, respeitando a história da
instituição católica, é aquele que, todo o tempo, é quase herético[1] -
quando não herético integralmente. Não cabendo condenar a condenação, a
historiografia deve zelar para uma dimensão importante, a que pergunta “o que
foi que aconteceu?”. Recuperar a dimensão polêmica da mística, no caso, é abrir
espaço para uma nova articulação dada em um lugar em que a condenação não se dê
restituindo à ação jogada às ruínas uma gama de sentidos possíveis – sua
contingência de um tempo presente.
Angelus Silesius, de Paul Klee, a reunião impossível em um outro lugar. |
O caso é que
Surin foi esquartejado. Não fisicamente, como se deu com Urban Grandier.
Surin foi esquartejado em arquivos diversos num percurso editorial que para
merecer a marca de labiríntica seria conceder ao desenho uma marca geométrica
irreal. Não há nada que nos lembre o piso da catedral de Chartres aqui, porque
as linhas são interrompidas, os percursos feitos em saltos e os escritos
dispostos numa ordem que respeita mais o sigilo editorial de diversas gavetas
de guardados do que uma estante temática de uma biblioteca. A unidade é
garantida, mas incomunicável porque não fala a nossa língua, mas a dos anjos. A
história por sua vez dispersa aquilo que de outra forma seria unidade e Michel
de Certeau reuniu por uma década a dispersa editorial que acolhiam os escritos
de Surin vindo a publicar, então, suas correspondências, seus exercícios
espirituais (Guide de la Perfection)
e o registro de suas atividades como exorcista. O trabalho é cuidadosamente
reconstituído no primeiro volume de La
Fable Mystique em que os arquivos e as edições de seus trabalhos são
cuidadosamente elencados na abertura do último capítulo do livro. O que vemos
nesta história, que é também a história da mística em uma versão microcósmica –
ou monadológica – é a história de um homem arruinado, isto é, posto em ruína em
que tudo o que lhe faz restar são escombros de papel redigido. Mas o caso da
mística, assim como o as considerações sobre a heresia, oferecem um conteúdo a
mais nesta história. O discurso místico fará as vezes de fala selvagem, uma das
quais preenchem as lacunas da experiência que a temática do progresso insiste
em anular.
Surin não
será, contudo, um cristão exemplar. Michel de Certeau, quem seguramente conhece
muito bem a economia da exemplaridade tem a diferença histórica em outra conta.
Vê nos cristão de outrora a unidade do cristianismo ainda que ao confrontá-los,
não se reconheça neles. E aqui a mediação da linguagem é, toda ela, um problema
a parte. E especial. Porque se trata da mística que é a arte de dizer escondido
– ou de não dizer, de gaguejar, de transpirar a experiência.
“O problema da linguagem constitui um dos grandes debates literários, filosóficos
e religiosos do período atravessado por Surin. Ele organiza sua obra em uma
dialética da língua (sistema que
definira e ocupa todo o campo do mundo) e da linguagem de Deus (a experiência espiritual que a “língua não pode
exprimir” e que “não pode ser nomeada”). Em Surin não se instaura nenhuma
linguagem acerca da verdade – posta ao lado do que é mundano. Somente um
“estilo”, uma maneira de falar pode
articular sobre a “língua” (esse dado prévio e universal) a “linguagem de Deus”
(um corte): as “feridas” do espírito marcam na língua, progressivamente, seu
estatuto de ser despossuído de seu Outro sem substitui-lo por qualquer outra
coisa que lhe fale diretamente.” (2005:46)
Em outras
palavras, o discurso místico dificilmente disse algo que não seja sua forma de
dizer. Porque, aproximando-o de um jargão epistemológico só se trata de
linguagem positiva quando a linguagem é outra, de uma instância completamente
Outra, Estrangeira em sua forma radical. Quando articulada na língua em que a
história se efetiva, é pura negatividade perfazendo a curva assintótica que
Thomas Csordas[2]
tenta recuperar em suas diversas incursões etnográficas no universo da cura,
tanto carismática quanto xamânica, o ponto no infinito em que a curva da língua
dos homens se cruza com a curva da língua dos anjos num exercício que não se cansa de clamar pelo suporte de William Blake. O trabalho
historiográfico, aqui, não é o de coleta de fontes, mas do exercício criativo de
correlacionar e se relacionar com
aquilo que resta de Outrem. Não sendo um esforço de folclorizar o
tempo alheio, é uma forma de restituir ao presente uma outra fonte passada
fazendo do presente, ele mesmo, uma nova forma de relação.
“Não se pode então reduzir a história à
relação que lhe entretém com o desaparecido. Se ela não é possível sem os “acontecimentos” dos quais trata, ela
resulta ainda mais em um presente. Com relação ao que se passou, passado, supõe
então uma lacuna que é o ato mesmo
de se constituir como existente e pensante, hoje.” (op.cit.49)
O campo da mística
é um campo em que a dimensão da experiência se põe de forma radical porque
intangível. É a expressão do tempo vivido em que nenhuma homogeneidade próprias
às vulgatas do iluminismo, ou mesmo a concepção de tempo profano de Eliade e Guénon
podem aceitar porque a dimensão do acontecimento é um obstáculo para a noção da
continuidade. A primeira frase do14º fragmento da teoria da história de Walter
Benjamim antecipa aquilo que será a raiz do discurso historiográfico de Michel
de Certeau, a de que a história é objeto
de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo
saturado de “agoras” (Benjamim, 1996:229) em que a correlação é a oferta de
um lugar sem que, assim, o historiador fale no lugar de Outrem.
[1] O caso de Mestre Eckhart é ilustrativo. Místico de
primeira grandeza foi alvo de processo inquisitorial em 1326 pelo arcebispo de
Colônia, Henrique de Virneburg. O franciscano condena 126 proposições de autor
de Da divina consolação. A acusação
de heresia nadou no paroxismo próprio da expressão da mística. Eckart vai à
Avignon no ano seguinte apresentar seu protesto. Em 27 de março de 1329 o Papa
João XXII condena 28 das 126 proposições por terem se aproximado demasiadamente
de fabulações vindo a terminar a causa com o seguinte dispositivo: “Nós...
expressamente condenamos e reprovamos os quinze primeiros artigos e os dois
últimos como heréticos e os outros 11 citados, como mal soantes, temerários e suspeitos de heresia, igualmente os
opúsculos do mesmo Eckhart que contenham os referidos artigos e alguns deles.”
(Eckhart, 1999:27, introdução de Leonardo Boff, grifo meu). Ao lermos os escritos
de ciência experimental de Jean-Joseph Surin, vemos que o jesuíta que conduziu
o exorcismo das irmãs ursulinas de Loudun quase teve a mesma sorte.
[2]
http://cilas.ucsd.edu/_files/faculty-cvs/csordas_thomas.pdf
Notas desde atrás do muro: os espaços da fé e o território como problema de teologia política.
2-
Palmira.
Berlin. Paris. Não importa grande coisa se o que resta, quando resta são
ruínas. A Queda da Bastilha deixou, além de parcos tijolos escondidos por vigas
que ergueram a Ópera erguida sobre uma estação de metrô, uma história símbolo
da tomada de poder popular que abre os trabalhos da Revolução Francesa. Berlin,
ensina Paul Virilio em Guerra e Cinema,
fora reformada pela arquitetura nazista para que, ao ser derrubada por
bombardeios dos Aliados contra o Eixo viesse a contar uma certa história de
grandeza – uma arquitetura baseada na grandeza da decadência de Atenas e Roma.
Palmira guarda na voz fantasmática do gênio que visita o narrador de Les Ruines a biografia dos excessos e,
portanto, dos erros dietéticos de uma civilização vindo a contar a história de
todos os equívocos, passados e futuros, da política humana. A lição da história
é que ela é o trato daquilo que resta, o que sobra, em contornos documentais
cujo arranjo não é da outra ordem senão o da ficção – é da ordem do feito.
Fetiche. E que se entenda que em nada tem a ver com o fato, de que por ventura
seja verdade. Tem a ver com o que resta. No caso, resta pouco da salvação e sua
história, a heilgeschichte.
“Conhecemos a história de um autômato
construído de tal modo que podia responder a cada lance de um jogador de um
xadrez com um contralance, que lhe assegurava a vitória. Um fantoche vestido à
turca, com um narguilé na boca, sentava-se diante de um tabuleiro, coloca-o
numa grande mesa. Um sistema de espelhos criava a ilusão de que a mesa era
totalmente visível, em todos os seus pormenores. Na realidade, um anão corcunda
se escondia nela, um mestre no xadrez, que dirigia com cordéis a mão do
fantoche. Podemos imaginar uma contrapartida filosófica desse mecanismo. O
fantoche chamado “materialismo histórico” ganhará sempre. Ele pode enfrentar
qualquer desafio, desde que tome a seu serviço a teologia. Hoje, ela é
reconhecidamente pequena e feia e não ousa mostrar-se.” (Benjamim,
1996:222)[1]
Interessante
notar que Walter Benjamim advoga pela feiúra da teologia e, sendo um
comentarista partidário da ode ao feio de Charles Beaudelaire, acaba por tecer
o seu elogio. O comentário à frase de Rudolf Hermann Lotze, de que é admirável
que mesmo individualistas conseguimos não sentir inveja do futuro parece
retomar as bases do que Ernst Bloch chamará de princípio da esperança em que a salvação se desloca para algo mais
adiante, como felicidade ainda que adiada. A teologia insiste em não abrir mão
de coisas que a fazem falar baixo, no canto da sala. Ela, contudo, segue
sugerindo. Ela orienta. Resta saber se a história que não mais se dedica a
salvação em primeiro plano saberá ainda receber lições para a condução das
almas ou, pelo menos, para seguir ouvindo a sua voz e compreendê-la com
tristeza de quem compadece pela derrota. Acídia.
Compadecer
pela teologia não implica, contudo, em aderir à eclesiologia mas sim em tratar a
história do espírito como uma voz ainda viva, mesmo que soterrada pelo entulhamento
produzido tanto por ela, soerguida em ordens de catedrais, quanto pela delação
e violação dos espaços que outrora foram seus. A revolta armada do braço contra
a cabeça, diria a defesa do Corpus
Mysticum paulino, que faz com que os braços tenham ilusões cerebrais. A
delação, por sua vez, se entulha na forma de progresso, exatamente contra o qual é preciso dar atenção, uma vez
mais, aos rumores que reclamam pela voz dos anjos. Porque o progresso é o braço secular com delírios
de nobreza.
[1]
http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,vagao-fantasma-roda-sem-condutor-em-sao-roque,1139284,0.htm
segunda-feira, 10 de março de 2014
Notas desde atrás do muro: os espaços da fé e o território como problema de teologia política.
CERTEAU, Michel
de. A escrita da história.
Forense Universitária. Rio de Janeiro.
1982.
________________________.
Le lieu de l’autre : histoire
religieuse et mystique.
Gallimard/Seuil. Paris. 2005.
KOSELLECK, Reinhart. Crítica
e crise : uma contribuição à patogênese do mundo
burguês.
Contraponto. Rio de Janeiro. 1999.
RIGAUX, François. A lei dos juízes. Martins Fontes. São
Paulo. 2003.
FOUCAULT, Michel. Segurança, território e população. Martins Fontes. São Paulo. 2009.
FOUCAULT, Michel. Segurança, território e população. Martins Fontes. São Paulo. 2009.
Talvez seja
importante lembrar que no mesmo período em que o artigo que serve de capítulo
de abertura de Le lieu de l’autre,
Michel de Certeau publicava seu L’écriture
de l’histoire, publicado no Brasil em 1982. O que o artigo em questão
desenvolve, assim parece, ou retomam aquilo que é o propósito do livro de 1975
ou, de outra forma, aprofundam temas que foram abordados de forma demasiado
sumária. A seção sobre a heresia e a redistribuição do espaço que serve de
abertura para Le lieu de l’autre
serve como nota daquilo que parece cumprir uma etapa da reflexão do historiador
jesuíta no qual se lê o desenlace da territorialização da fé – um capítulo da
história do cristianismo extremamente fecundo, igualmente posto como elemento
central nas sociologias de Max Weber e Ernst Troeltsch e na historiografia de
Ernst Hartwig Kantorowicz. No caso de Weber é desnecessário citar a recorrência
do problema da dominação como conformação ética e jurídica do balanço entre
autoridade e poder político, fartamente discutidos em uma seção considerável de
Economia e Sociedade, para não dizer
em outros tantos trabalhos do mesmo, inclusive os de teor propriamente
metodológico. Troeltsch, ainda que menos comentado, é responsável por um
tratado em que o que encontramos é fundamentalmente uma sociologia da história
institucional da igreja católica e o papel fundamental das igrejas territoriais (landeskirchen)
na formação da cristandade, particularmente no medievo posterior de quando das
ameaças oriundas da pressão geopolítica do islã, por um lado e, de outro, a
emergência dos principados protestantes já na emergência do Renascimento –
tratado complementado pelos seminários sobre protestantismo e modernidade. Por
sua vez Kantorowikz é responsável por uma historiografia da metáfora dos dois
corpos do rei sendo o segundo a representação da continuidade da Coroa na forma
de uma pessoa imortal e co-extensiva ao território, este lido como análogo ao Corpus Mysticum do corpo eucarístico
cristão que, não menos importante, tem no fisco uma das formas essenciais de
sua manipulação (The King’s Two Bodies).
Os capítulos
desta história podem ser estendidos para o ensaísmo de Arthur Versluis, os trabalhos seminais de Carl Schmitt e Hans Blumenberg, e a
historiografia dos dispositivos de perseguição de Bob Ian Moore. Contudo seria ocioso, e eu incapaz de levar
adiante o esforço em ser exaustivo na apresentação de uma bibliografia em que
seja posta a questão da organização política da fé como um problema de
instituição do espaço, a formação dos termos de conciliação dos povos irmãos e
a definição do lugar do outro, tema que dá nome à coletânea do livro de Michel
de Certeau. Como historiador de Certeau está longe de ser um escritor
convencional. A organização meramente cronológica das fontes não é suficiente
para a crítica das mesmas, e sua prosa não se permite cair no engodo da
anterioridade quando, no final das contas, aquilo que veio depois pode e
frequentemente determina aquilo que o historiador coloca como origem histórica
de algo. Mais atento ao que ele mesmo chama de deslocamento nos quadros de referência em uma especialidade
particular da historiografia – história da religião na modernidade clássica
europeia -, de Certeau se volta frequentemente para dois movimentos. O
primeiro, aquilo que constitui o esforço integrativo da igreja ser a igreja não
a despeito, mas por causa de suas diversas dimensões e contradições – o que é
obrigatório quando se escreve desde o ponto de vista da Companhia de Jesus,
tantas vezes colocada sob suspeição teológica. O segundo diz respeito ao objeto
que chama a atenção do historiador francês, a saber, o arco narrativo da
religião na era moderna:
“Para esboçar inicialmente esta trajetória de
uma maneira global, e tal como se anuncia, pode-se dizer que os séculos XVII e
XVIII mostram a história de um divórcio. Não que as relações entre “moral” e
“religião” tenham sido harmoniosas ou fáceis anteriormente. Muitos trabalhos o
demonstram: elas foram tempestuosas, nunca estabilizadas, por exemplo, naquilo
que se refere à usura, à sexualidade e ao poder temporal[1],
mas o princípio referencial de sua união não fora posto em causa. No decorrer
da Idade Média, e ainda no século XVI, continua-se admitindo que a moral e a
religião tem uma mesma fonte: a
referencia ao Deus único organiza, em conjunto, uma revelação histórica e uma
ordem do cosmo; ela faz das instituições cristãs a legibilidade de uma lei do
mundo. A sociedade se articula nos termos de uma crença integrativa.”(1982:153)
Aquilo que
fundamenta a ordem jurídica dos espaços em modernização abandona critério
católico/eclesiástico de jurisdição vindo a instaurar progressivamente outras
formas de reconhecimento da legalidade e da correção de uma ação qualquer,
assim como aquele que é passivo de um juízo ordinário a este respeito[2].
“Dito de outra maneira, a ética representa o
papel antigamente outorgado à teologia. Uma “ciência dos costumes”, de agora em
diante, julga a ideologia religiosa
e seus efeitos, lá onde a “ciência da fé” classificou os comportamentos em uma
subseção intitulada “teologia moral”, e hierarquiza as condutas segundo os
códigos da doutrina. Desta evolução existem vários sinais: o primado epistemológico
da ética na reflexão sobre a sociedade; a apreciação da religião segundo
“valores” que não são mais os seus (o bem comum, a exigência da consciência, o
progresso, etc.); a retirada da religião para as “práticas religiosas” ou o seu
alinhamento com as categorias impostas por uma sociedade; a marginalização do
culto com relação à lei civil ou moral; etc.” (op.cit.:154)
Nos deslocamentos dos quadros de referência
que não deixam de apontar para uma certa leitura de Michel Foucault e suas eras
epistemológicas postas no território da prática mais vulgar, encontramos uma
convergência entre o domínio temático que fornece o objeto empírico e o
problema da ordem metodológica que discute a sua objetividade. Porque o que
está em questão nos ensaios do historiador, neste período, não é a redação de
sumas cronológicas mas sua problematização em seu afazer. Neste afazer de
proporções metodológicas o tema da heresia – ou a redistribuição do espaço[3]
- merece atenção especial não somente por ser a primeira seção do artigo, mas
por ser um problema reincidente. No artigo sobre a formalidade das práticas é o deslocamento da ortodoxia – de
teológica para uma ortodoxia legal-estatista – que propicia e condiciona a
transformação da heresia em alteridade em que seja pesada a seu desvio
propriamente social, conceito chave
para a constituição de unidade contra a qual uma heresia deve atentar. A afirmação central das Luzes é a da
legalidade e da inteligibilidade, afirmara Pierre Chaunu. É a uniformidade da Lei como critério de união
que a conversão da heresia deve se dar.
Do ponto de
vista metodológico que não abre mão ao menos da inteligibilidade, a heresia se
apresenta como legibilidade doutrinal de
um conflito social apresentada como forma binária, do mesmo tipo que
outrora teria pautado debates como o que se dera entre David Maybury-Lewis e
Claude Lévi-Strauss – do dual societies
exist? No final das contas são dualismos, ou tensões duais em que o
critério político é recuperado, aquele que define estar dentro ou fora da
Igreja, ser ou não ser cidadão, estar incluído ou excluído do grupo – no que
pese o paradoxo do soberano, o excluído que inclui. Assim, clérigos/burocratas
(clercs) e sua leitura das práticas
intelectuais e teológicas de devoção rurais no século XV; a clivagem entre
Norte e Sul no século XVI no que tanjam as igrejas reformadas e a Reforma
tridentina; o universo da querela dos Antigos e Modernos que se reflete tanto
numa discussão diacrônica do progresso quanto a versão geográfica da
sincronização do progresso, também atendendo pelo nome de colonização; são
estes os elementos que Certeau considera determinantes para a proliferação da heresia que vai
culminar, como vimos, em uma nova forma na qual a ordem eclesiástica perde o
monopólio do ajuizamento e quem ajuíza é exatamente o corpo que outrora era
somente o braço secular da cabeça eclesiástica, o Corpus Mysticum, cabeça e membros.
A heresia se transforma em cisma exatamente porque a primeira,
diluída nos conteúdos legais que não a reconhecem como tal mas sempre como
outra coisa – de um ponto de vista histórico e institucional interessado. Igrejas
assumem a face partidária e fidelidade e
divergência religiosas se politizam em fenômenos de reinterpretação social
(op.cit.:25).
“Os conteúdos
permanecem, mas submetidos a um tratamento novo que, proposto pelos cortes
perpetrados pelas cisões, apresenta-se mais tarde pela fórmula da gestão
política das diferenças. Os móveis herdados são redistribuídos em um novo
espaço que organiza uma outra maneira se os repartir e deles se servir. Sob
esse prisma a cisma amarrota os dados, fisga o gesto político ou científico de
reclassificar e de manipular. É um trabalho sobre a forma social – diferente e
complementar ao da evolução que, em outro caso, muda os conteúdos ainda que sem
modificar a forma social onde se dão os desdobramentos ideológicos.”
(id.ibid.)
O controle
de manifestações como os da feitiçaria e mesmo a problematização emergencial da
educação faz com que o movimento dos elementos constitutivos assuma sua clareza
brutal de reforma das instituições, sendo uma delas obviamente a eclesiástica. Esta
reforma que nos oferece um sentido muito mais radical e agressivo do que a mera
remissão ao evento protestante tem, aqui, o papel de oferecer ao problema da
gestão da diferença – uma variação particular de como encarar o governo de um
território – o recorte dos lugares onde se darão as práticas e a manifestação
da religião, isto é, da divergência perigosa. É o Ancien Régime, período em que
o acirramento das querelas passa a ser mediado por um ator que é gerido pela
Razão de Estado que tem por fim a qualidade de organizar as relações por
critérios exógenos aos grupos que passam a ser tratados, enfim, como população
(Foucault,2009:117-155). É neste território que as diferenças perigosas se
transformam mais e mais numa questão de foro privado (Koselleck, 1999), ou
seja, ajuizado pelos praticantes em sua associação particular fazendo
assemelhar igrejas de associações esportivas pelo efeito da cláusula arbitral
que exclui da competência jurisdicional aquilo que outrora fora reconhecido
como hierarquia (Rigaux, 2003:17-21). Da ordenação do lugar público sob julgo
do Estado, a ordenação particular das denominações em seus lugares de culto, em
estabelecimentos da fé cujo corte
organizador circunscreve um campo apropriado na superfície do mundo. Mas
que se entenda que o assunto é França e que a religião fracionada em
privacidade incomunicável é a católica. Porque o movimento contrário, o de
acirramento das diferenças perigosas, se dá na afirmação das diferenças ainda
que em foro privado. Já é possível ao menos dizer.
A escala desta discussão é, ainda assim,
enorme e aparentemente divorciada das práticas – algo similar ao divórcio entre
o religioso e o discurso moral. O divórcio se dá por uma espécie de holograma
do tempo das instituições que projetam significantes como se seu significado
estivesse dado na tradição e que a mesma fosse, por isso, sinal de estabilidade
semântica. Como se a relação entre símbolos e seus afazeres fossem da ordem da
fixidez, coisa que a história quantitativa de historiadores como Michel Vovelle
só fizeram reproduzir em atentar que é preciso fazer com que a tradição faça
sentido de novo, a cada ato. E que a tradição mesmo é uma operação deste tipo,
aquela que faz viger de novo o Antigo; fazer dizer de novo o indizível; figurar
mais uma vez o que se perdeu no tempo histórico na encenação da eternidade do
mundo. É neste plano que a ambivalência
do gesto se insinua sob a univocidade da cifra (2005:27). A recuperação das
dimensões práticas é, por fim, o horizonte da prática historiográfica que se
desdobra em escritura de textos: os que lê e os que escreve. Este pode ser, por
sua vez, um gesto etnográfico por excelência do tipo follow the native, especialmente por percorrer o universo do
silenciamento da religião e da emergência de dispositivos de dizer sobre aquilo
que deveria permanecer ausente do discurso dado os riscos que oferece. Dito de
outra forma, o registro escriturário daquilo que seria silêncio na comunicação
presente.
[1] Aqui de Certeau cita John T. Noonan.
[2] Os trabalhos de Robert
Mandrou sobre magistrados e feiticeiros no mesmo período, assim como os
trabalhos de Claude Reichler sobre diabolia, comédia e libertinagem são
exemplares na coleta da documentação que re-encena o divórcio da linguagem
sobre a moral da linguagem religiosa. O que é certo e o que é errado prescinde
de afirmações a respeito de Deus e mesmo, desde o plano enunciativo, de sua
existência – como é o caso de d’Holbach.
[3] Certeau (2005:23-26).
quarta-feira, 5 de março de 2014
AInda não: crônica crônica de carnaval.
Foi então que pisei fora de casa. Não dei a menor bola para
os helicópteros sobrevoando a avenida Santa Isabel e mesmo ao som das primeiras
explosões. Pirotecnia, ambos, da Polícia Militar e de foliões que sempre usam
da sorte para explodir latinhas e assustar transeuntes. Afinal, aqui é terra em
que se comemoram natais com fogos de artifício. Muitos, ainda que sem o
acompanhamento de gritos desesperados perfazendo a melodia “filhos-da-puta”
que, por fim, moveram-me do sofá. Que pese o fato de eu não estranhar mais
sobrevoos de helicópteros policiais e de conviver com gente que explode coisas
por diversão, como eu mesmo fiz na adolescência. A
tensão dos gritos estava
alguns tons acima do desconforto habitual de morar em Barão Geraldo, Campinas.
Esta que é
uma ilha num mar de abjeção urbana, é ela mesma uma abjeção. Só é uma ilha
porque perdura sua forma intangível de ser a Terra do Nunca que abriga a
Unicamp, em que Nunca segue presidindo todas as atividades. A mesma Terra do Nunca com facções diversas de Meninos Perdidos que
mal e porcamente povoam as ruas. Na verdade, não, porque voam não tocando o
chão, overdose de toques de fada Sininho. Esta mesma ilha está pipocada de
violações aos hábitos civis banais. Há um toque de recolher implícito que faz das
ruas um ambiente deserto às 21 horas, toque este acompanhado pelas ruas escuras
de uma iluminação tenebrosa que permitia às fantasias de vampiro de outrora,
quando eu explodia coisas, a mais palpável verossimilhança. Quando adolescente,
temido por quem cruzasse na rua – ainda que este fosse, em geral, ninguém.
Minha mãe sempre temerosa, calculava o pranto na possibilidade de um
acontecimento infeliz e, no entanto, nunca.
Quando pisei
fora de casa na madrugada de uma terça-feira de carnaval, ano de 2014, fomos
invadidos pela força alheia. Vi carros atravessados na rua que me viu sair dos
cueiros, não à forma irresponsável das oficinas mecânicas de interromperem a
calçada irregular, mas nos contornos do desespero coletivo. Choro, raiva,
trânsito interrompido. Tosse seca, algumas doloridas e outras tantas fingidas
com o ofício daquele que não perde a oportunidade de participar da História. As
fantasias já não importavam mais pois, assim se via, todos estavam nus. Todos?
Olhei sobre o ombro direito. Parecia um milagre. Um acontecimento. Trinta
sombras de escudo em riste e bastões intercalados com canudos de soltar
projéteis. Andavam acuados por um enorme vazio em que as ruas, já depois das 21
horas, travestiam. Seguiam rumo à Av. J.B. de Oliveira, saindo da outra
avenida, Santa Isabel, a mesma frequentemente visitada pelo som dos
helicópteros em rasante. As trinta sombras, com ombreiras ovaladas, partes de
corpo em brilho fosco do negrume das peças aconteciam ao som de bombas e
marcha. O silêncio vinha de outra parte, era o samba quem havia calado.
Do portão de
casa até a Praça do Côco é uma caminhada de levar a avó. Coisa pouca para
chegar em um terreno em que o que se dá, basicamente, são reuniões de fazer
nada, o epicentro descontraído da Terra do Nunca. Uma ilha em uma ilha, o golpe
parece ter atingido o pâncreas do eterno esconderijo produzindo tão e
simplesmente a bile que sobra do cansaço do corpo após o envenenamento
recreativo dos dias de carnaval. Os gritos de desespero e ofensa só faziam
crescer na exata medida em que não somente o samba fora silenciado, mas
colocado em uma escala negativa do canto roubado. Mais uma bomba de gás.
Acompanho as sombras desde atrás, com uma distância saudável, a saúde de quem
caminha olhando a nuca alheia. Viro a esquina da rua de casa, à esquerda, e
sigo até a Praça do Côco, onde o derradeiro ambulante desmonta a parafernália
devidamente esbaforido e revoltado. Porque não estava acontecendo nada que não
fosse samba, foi assim que ouvi da boca dele, e que tudo o que se deu foram gás
e balas de borracha. Um ou outro fantasma, vindo de outros momentos deste
evento máximo, o primeiro, repetiam a ladainha que se assume ares de voz
maldita, aquela que diz ter visto não saber o que aconteceu. Não importa por
onde a história começa, não há quem afirme saber de onde veio o golpe.
Foi o
suficiente para me distrair - o que deveria ter servido de sinal, para eu não me enganar, não levar em conta a possibilidade de estar no mesmo evento em que eu pude contar 30 sombras. Naquilo que deveria ter sido o caos e o medo, parar e conversar com quem tinha muito o que perder em
simplesmente correr. E distraído, perceber carro, equipamentos e mercadoria que serviram de âncora para
uma dúzia de pessoas que persistiam em ficar na mesma praça que abandonariam
minutos depois. Mas não havia mais ninguém além daqueles que, nas contas decisivas, eram os derradeiros. E no entanto, as sombras seguiam no
exercício. Passos marcados e, logo mais, o som de sua própria verve percussiva.
Bastões sorvendo os escudos da cadência interrompida para uma multidão ausente,
dispersa sem nunca ter se aglomerado. Um curto ensaio musical chegando à zona
de dispersão, 5 viaturas da força especial aguardando pacientemente sua ala
sombria que agira no mais seguro anonimato da noite desabitada. Uma curta
comemoração e então o preto fosco das peças duras cede ao tecido cinza de
homens que partiam sem praticar o ofício policial de averiguar, investigar,
reconhecer. Saíram de costas para dar a impressão de que estavam chegando, sem
luz, sem som, sem sombra.
Passei a
madrugada em claro, contando e levantando detalhes, divulgando a boa nova de
que não éramos mais a Terra do Nunca e que tínhamos quebrado com a maldição das
facções. Os Garotos Perdidos poderiam voltar para casa. Mas diz a informação do
ministro do alcaide que não, que nada, que nunca. Como antes. Os calos nos pés
reforçados por minha sandália ruim são, por fim, uma história interrompida e já
é tarde demais para reaprender a voar.
Mas o que aconteceu?, poderia me perguntar o leitor. Com alguma tristeza sou obrigado a reconhecer que não aconteceu nada. Ainda não.
Mas o que aconteceu?, poderia me perguntar o leitor. Com alguma tristeza sou obrigado a reconhecer que não aconteceu nada. Ainda não.
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