CERTEAU, Michel. A escrita da história. Forense
Universitária. Rio de Janeiro. 1982.
KOSELLECK, Reinhart. Crítica
e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês.
Contraponto/Uerj. Rio de Janeiro. 1999.
ROSANVALLON, Pierre. Le moment Guizot. Gallimard. Paris. 1985.
3- “Os desdobramentos dos acontecimentos revolucionários,
os de 1793 em particular, provocaram uma interrogação fundamental a respeito do
sentido da idéia de democracia vindo assim a deslocar o centro de gravidade da
reflexão política. No começo do século XIX a
questão crucial que toda uma parte dos autores “liberais” busca resolver é a
das relações entre liberalismo e democracia. Seu objetivo é de compreender
as condições nas quais o ideal democrático da participação na coisa pública se
voltou, com ferocidade, contra as liberdades.” (Rosanvallon, 1985:14)
O hiato
revolucionário, eis o alvo de Pierre Rosanvallon na recuperação de uma determinada
memória e imaginação política precipitada, não das barricadas mas dos esforços
de seu desmonte – tarefa que somou esforços de todo um século dado que o hiato
é mais sutil e trabalhoso do que uma espécie de lapso que se interpõe entre a
Revolução e o futuro. A história política francesa que atende aos apelos do
liberalismo político do século XVII se volta fundamentalmente para a resolução
de problemas que a orientação dos escritos de pensadores como Rousseau e
Montesquieu simplesmente não poderiam prever. Não me refiro, obviamente, a
nenhum componente da escatologia secularizada e as tragédias narradas em suas
entranhas. Estou apontando para o problema, nada banal, de que Rousseau e
Montesquieu são, ao mesmo tempo pensadores e agentes políticos quando vivos; e
nomes nos frontispícios de livros que circulam a despeito do que viessem a
fazer, ou de onde estivessem e qual sua posição relativa aos eventos
mobilizados em seu nome. Se ao lermos livros antigos temos um acesso facultado
à comunicação com os mortos – doutrina da historiografia moderna em sua relação
com toda sorte de documentos -, por outro lado escrever é entrar no mundo dos
mortos sem, no entanto, morrer completamente. Se é que é possível morrer
completamente, por escrito, rastro que antecipa a morte sem matar completamente
e que, de uma forma ou de outra, parece deixar as coisas exatamente assim
fazendo da vida uma espécie de rumor tão perpétuo quanto o registro:
“A poeira do tempo persiste. É bom
respira-la, ir, voltar por via desses papéis, dossiês e registros. Eles não são
mudos e tampouco tão mortos quanto parecem. Jamais toquei em nada sem que algo
saísse, se revelasse... É a alma.”(Michelet, 1979:45)
A poeira
sobre os arquivos onde Michelet comungava com os Processos Verbais da Revolução
e, com isso, seguia os traços e a alma daqueles que revelavam as faces e
detalhes da erupção que recriava toda a história francesa produzindo uma
clivagem definitiva – ou tanto quanto uma clivagem definitiva pudesse perdurar.
O antigo e o moderno numa batalha em que nomes de frontispícios como Rousseau e
Montesquieu passam a desempenhar um papel de focos de remissão, sempre
ambivalente, próprias da orientação bibliográfica que parece ser, antes de mais
nada, de caráter anímico. Joseph Jacotot é rousseauniano, por exemplo, mas em Émile não é possível encontrar nada que
não seja a sugestão de premissas que legitimam o mestre ignorante por via de um
espaço em aberto sem ter nele, todavia, nenhuma forma de figuração ou via
institucional de implementação. Não é preciso dizer que o contrato social não
produziu nenhum acordo conciliatório ou que o espírito das leis anima muito
mais coisas do que simplesmente uma definição racional de ordem política sem no
entanto apontar consigo as visas de fato institucional – dilema do pensamento
utópico concernente à crise inaugurada pelo pensamento revolucionário que
Rosanvallon mitiga ao chama-lo meramente de ceticismo iluminista.
“Pertence à natureza da crise que uma decisão
esteja pendente mas ainda não tenha sido tomada. Também reside em sua natureza
que a decisão a ser tomada permaneça em aberto. Portanto, a insegurança geral
de uma situação crítica é atravessada pela certeza de que, sem que se saiba ao
certo quando ou como, o fim do estado crítico se aproxima. A solução possível
permanece incerta, mas o próprio fim, a transformação das circunstâncias
vigentes – ameaçadora, temida ou desejada -, é certo. A crise invoca a pergunta
ao futuro histórico.: (Koselleck, 1999:111)
A história
da modernização das instituições, e da própria instituição da noção de governo
na Europa moderna produz um ambiente em que aquilo que se pode chamar de
“religião” é diluído em no conteúdo moral, o que implica na aposta da religião
natural e de uma certa equivalência entre as religiões – isto é, uma
indiferença segura entre elas. Esta indiferença pode ser traçada em algumas
alterações fundamentais que pautam o terreno em que se altera a percepção do
que é religioso e sua conversão, mais uma vez relativa, à moral. Uma delas,
devidamente destacada por Michel de Certeau (1982, 151:208) está naquilo e que
ele chama de transformação da heresia em alteridade religiosa na qual as
diferenças que culminam em proscrição territorial dos cultos públicos em
igrejas territorializadas tem seu lugar de fato e de direito. Os elementos de
perseguição com seu caráter propriamente inquisitorial, ainda que persistentes,
não são codificados nos arcanos de Estado, o que significa dizer que as regras
do jogo mudaram – assim como aquilo que de fato está em jogo. Isto porque a
mudança de seu estatuto implica necessariamente na alteração do enquadramento
das seitas heréticas segundo um ou outro princípio. Nisso, a determinação
jesuíta de que sugere que alguma religiosidade é melhor do que nenhuma ecoa
como uma dimensão utilitária fundamental na qual todas as religiões contém princípios úteis à sociedade, segundo
Montesquieu na carta 86 das Lettres
perses, que encontram eco na necessidade da religião, da parte de Voltaire
na manutenção da melhor ordem política. O que parece ser o movimento relevante,
aquele que converte a religião em moral e a moral é ela mesma transformada
reside no valor utilitário-funcional da religião e em como ela poderia ser
útil; e útil para quê.
Este é um
jogo de combinatória bastante complexa, algo interminável. A combinação
imediatamente interessante é aquela que anota a extrapolação do foro íntimo
como terreno do político, algo interditado de forma expressa pelo absolutismo
em sua diversidade. O que Koselleck aponta ao recuperar este episódio em
questão, privilegiando enormemente o comentário a Hobbes é a produção da
dimensão em que é gestada a crise, não somente como ato revolucionário mas
também como mecanismo crítico que faz com que a crítica se desdobre vindo a se
dobrar sobre si mesma. Entendendo que o império da lei que o absolutismo
elabora estabelece algumas das primeiras interdições definitivas ao poder
eclesiástico
(o
primeiro estado), o que se lê em Hobbes é uma distinção radical entre ordem
política e convicção, esta vivendo sob o Império da liberdade. Desde que em
segredo.
“Assim, o homem é partido em dois. Hobbes o
divide em uma metade privada e outra pública: os atos e as ações são
submetidas, sem exceção, à lei de Estado, mas a convicção é livre, “in secret
free”. Daí em diante será possível ao indivíduo refugiar-se em sua convicção
sem ser responsável. Na medida em que o indivíduo tomava parte no mundo da
política, a consciência tornava-se apenas uma instância de controle do dever de
obediência. A ordem soberana dispensava o indivíduo de qualquer
responsabilidade. “A Lei é a Consciência pública; Consciências privadas... são
apenas opiniões privadas”. Mas, se o
indivíduo se atribui competência em um domínio reservado ao Estado, ele deve
mistificar-se para não ser obrigado a prestar contas. A divisão do homem em uma
esfera privada e uma esfera pública é constitutiva da gênese do segredo. O
Iluminismo irá sucessivamente ampliar o foro interior da convicção; qualquer
pretensão que incorresse em um domínio do Estado permanecia forçosamente
encoberta pelo véu do segredo. A dialética entre segredo e movimento
iluminista, desmascaramento e mistificação, surge desde o início do Estado
absolutista.” (Koselleck, 1999:37)
O que é
instaurado pela crise revolucionária é a abolição desta fronteira na medida em
que os grupos secretos que se reuniam em volta de suas aspirações morais em
associações as mais variadas atingiram à marca da conspiração generalizada na medida
em que reunir-se para certos fins seria o equivalente a conspirar. E conspirar
necessariamente implicaria numa forma de ameaça interna estabelecendo outros
paradigmas do reconhecimento do inimigo que não fossem ex-fronteira numa lógica
de englobamento de contrários, o que já foi, forçando numa relação de analogia, o exercício com relação
aos cultos heréticos. Neste sentido a
Revolução não implica na extinção da instância conspiratória de foro íntimo,
mas na generalização da conspiração para todas as regiões tributáveis e, com
isso a produção de conhecimentos compatíveis com o exercício das formas de
poder presentes.
“O saber histórico-filosófico e o programa
político fazem parte do mesmo segredo. A iniciação ao arcanum da tomada indireta do poder [o objeto desta passagem é o
Iluminismo alemão] era, ao mesmo tempo, uma iniciação à
filosofia da história. Os próprios iluminados são os “arquivos da natureza” em
que o curso da história já está estabelecido. Como em Rousseau, reina o início
da história um estado total de inocência; segue-se um período de dominação e
opressão; finalmente, inicia-se a moral que Jesus já havia ensinado, retomado
pelas sociedades secretas para superar a era do dualismo. Alto e baixo,
inferior e exterior deixam de ser fenômenos históricos, pois com o desenvolvimento
sucessivo da moral desaparece toda forma de autoridade e, assim, também o
Estado. Para os iluminados, o curso da história é ao mesmo tempo – graças à sua
iniciação – a realização do seu plano secreto, de acordo com o qual esperavam
eliminar o Estado. O curso dirigido da ação secreta, que consistia em minar o
Estado por dentro para eliminá-lo – isto é, a ação política – foi projetado em
uma linha temporal do futuro, de modo que o cumprimento dos desígnios da
história era, ao mesmo tempo, a garantia da vitória não violenta da moral, da
liberdade e da igualdade, e, portanto, o cumprimento da missão política dos
maçons.”(Koselleck, 1999:116)
Como podemos
ver, compreender o fenômeno revolucionário é um exercício muito mais complexo
do que a promoção de leituras de tipo “herança maldita” à forma de Rosanvallon.
Não porque não exista, mas por mobilizar muito mais do que alguma forma
específica de ceticismo diante as formas simbólicas da tradição. O que está se
inaugurando é um modo de relação e, com isso, um reposicionamento dos termos e
uma conformação que dá uma certa unidade dos discursos oferecendo à Revolução o
seu caráter propriamente mitológico no qual as convicções puderam, finalmente,
sair do armário – especialmente na forma de poder indireto, como seria o caso
de ferramentas como a filosofia da história (Koselleck, 1999:118). Entra em
pauta a diferença entre Estado e sociedade, sociedade esta como equalizadora
das demais diferenças como as de caráter religioso – prédicas da igualdade
jurídica entre todos os cidadãos cujo fundamento é moral. Temos até agora, em
mãos, dois dos principais termos da alegoria política revolucionária: liberté e égalité, nenhum deles exercido no seio do Estado que deve ser, na
circunstância ótima de sua justificação, o seu garante ou tutor. Não mais
soberano, portanto, o Estado é um meio de concretização de aspirações cuja
relação com os cidadãos segue a lógica do mistério no qual não cabe nenhuma
justificação plausível senão a tomada de decisões e a condução administrativa –
eis o pós-revolucionário em sua versão prosaica.
O que se faz
então tendo em mente não somente a Revolução mas a partir da problematização
dos excessos e crimes cometidos durante o Terror abrem guarda para o
redimensionamento da vontade geral como futuro indiscernível da composição
entre Estado e sociedade para a composição do preenchimento institucional por
projetos que recusem a dissimulação que faz com que projetos políticos sejam
tratados como filosofia da história. A herança crítica do Iluminismo – a crise
– produziu um terreno no qual a política passa a operar com o horizonte da
probabilidade matemática cuja generalização não se dá senão de forma tardia mas
que tem seu ponto de partida nos projetos articulados na geração dos idéologues:
“O esforço dos ideólogos para fundar a
política e a moral cientificamente desdobra-se em três direções. A primeira é a
“matemática social”. A expressão é de Condorcet em seu Tableau general de la Science qui a pour objet l’application du calcul
aux sciences Morales et politiques. Ao fundar a ciência do provável ou
ciência da decisão tinha como objetivo instituir uma disciplina que englobaria
por sua vez a análise social e a matemática. A inspiração é, naturalmente,
parente daquela Arithmétique politique
tradicional que fora retomada inegavelmente no começo da Revolução por via da
publicação dos trabalhos de Lagrange e de Lavoisier.”(Rosanvallon,
1985:21-22)
As outras
duas dimensões as quais Rosanvallon menciona são a fisiologia social, cuja
referencia fundamental é a figura de Cabanis e, obviamente, a economia
política, disciplina vigente desde o exercício dos fisiocratas. A primeira
criação tem como objetivo a constante de observações relativas à dimensão
moral, sinal diacrítico de humanidade cuja ciência se ampara na fisiologia, na
análise das idéias (daí ideologues) e
na moral. Nestes termos, especialmente a partir de 1814 – fim do Império de
Napoleão – este tipo de projeto político se amarra no que Rosanvallon chama de cultura de oposição liberal que clama,
ao mesmo tempo por uma cultura de governo que desenvolva do
ponto de vista técnico aquilo que seguira como um salto no vazio do futuro
interpretado pelo arcano da vontade geral. Em determinado círculo,
imediatamente relevante para o tema e questão, se faz “necessário terminar a Revolução, construir um governo representativo
estável e estabelecer um governo garante das liberdades fundadas na e pela
Razão.” (Rosanvallon, 1985:26). O alvo das investigações de Rosanvallon é
uma espécie de liberalismo reformado pelos eventos revolucionários nos quais as
ações deliberadas também recaíram sob suspeição e que, diante disso, faz com
que a religião que já determinada a uma função moral de utilidade tenha seu
denominador comum igualmente reformado. A moral como modo integra a imaginação
de meio, no caso, de governo. Daí a pertinência dos projetos relativos à
Instrução Pública; também a pertinência de figuras como a de François Guizot e
o destino das religiões durante e após a Revolução. Porque ele mesmo, Guizot,
condutor da reforma da instrução pública francesa nos anos 1830, é calvinista.