quinta-feira, 23 de junho de 2011

Meu Avô






Cresci já faz um tempo e, não tarda muito, começo a encolher os centímetros que a velhice toma para si e esconde no bolso de trás. E, confesso, tenho torcicolo procurando orientação num momento como este, porque não tive avô. Quero dizer, tive. Dois. Um, avô natimorto. O outro, distante nas Minas Gerais, aparecia em refúgios temporários para tomar café na varanda, comer mamão com aveia de manhã e partir em meio às histórias da linha telefônica que conseguiu com minha avó, não a casada com ele, sem nunca ter pago. Sabe, linha telefônica, nos idos anos 60 custava o mesmo que dar entrada em apartamento. Num vai e vem periódico, meu avô não foi aqui.

Mas eu passei muito tempo ligado em televisão, de mil e uma formas e, ainda há pouco, percebi que estive na boa companhia de um velho durão, mas gentil nas horas e formas mais adequadas, e que me convenceu que há variedade do lado de lá. Este, por fim, faz quadro a quadro a coletânea de todos os sexagenários que me deram as mãos em momentos descolados entre si, e que só tem em comum a minha memória. Assisti a Gran Torino e vi que Clint Eastwood é o avô que eu não tive. Não Clint, mas nos quadros em que aparece, aos poucos, como Walt Kowalski et al. As lágrimas que não perdi até então com a velhice viril dos avôs que mal tive devem rolar em pouco, me diminuindo o volume e me fazendo, um pouco menor, um pouco mais velho.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Proto-história positiva de umas coisas aí.

Porque parte da história narrada pelo ponto de vista progressivo - e positivo, mais de bem com a vida, e entusisasmado com as propriedades mnemônicas da vida coletiva moderna, tem o hábito de narrar o progresso segundo a chave de como chegamos até aqui, e como foi chegarmos até aqui. Daí a pergunta cética: "Chegamos? Chegarmos?" - do tipo que acha engraçado quando dado time termina bem uma partida e um torcedor, em frente ao seu televisor, sussurra: "Ganhamos!". A história do progresso me soa, por fim, a uma grande torcida fazendo !Hola!.






(entenda-se bem que não tenho time de futebol, mas em filosofia da história, eu sou botafoguense.)

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Via de mão única

"Ficou combinado que minha mãe me guardaria os sacos que serviam para embrulhar os cereais que ela comprava. Ah! com que entusiasmo, voltando para casa, à noite, eu explorava esses tesouros dados como restos de discursos, como fragmentos de anais! E com que irritação chegava ao final da página rasgada sem prosseguir a narrativa, que nunca continuava na entrega seguinte que minha mãe me fazia em forma de sacos ou canudos, embora lhe tivesse recomendado para trazer as lentilhas sempre do mesmo comerciante."









retirado de "A Noite dos Proletários - arquivo do sonho operário", de Jacques Ranciére, no capítulo em que disserta sobre a descoberta da leitura por quem não deveria, ou não poderia, por via de embrulhos de jornais (Goscinny & Uderzo escreveram que os peixeiros foram os primeiros advinhos ao lerem, não nas tripas, mas nas embalagens de jornal, as novas do cosmos) ou maiêuticas de mão única.

Com a mãe.





Ranciére recupera histórias de mães que não sabem ler e que, ainda assim, ensinam seus filhos a dar seus primeiros passos na República - ensinamentos da mãe claudicante. Proposta de um esforço fora do sério, e que sabe, quando sabe evadir, promove uma ou duas mil pequenas reviravoltas na vida de alguém.





Rompido o cordão umbilical do tipo romance, encaixado em versos do bom e velho Miguel Torga, o mesmo narra já em Coimbra, em 3 de stembro de 1941, um determinado envio. Correio.

"Carta de minha Mãe./quando já nenhum Proust sabe mais enredos,/ a sua letra vem/ a tremer-lhe nos dedos.// - "Filho".../ E o que a seguir se lê/ É de tal pureza e de tal brilho,/ que até da minha escuridão se vê."

terça-feira, 31 de maio de 2011

Direitos Autorais e Reserva Criativa em Debate







Em geral, são auto-anunciadas como quase alguma outra coisa. Dão as caras, oferecem-se de corpo inteiro como algo que não lhes define inteiramente, e que, logo mais, podem atingir o ápice de quase ter sido o que de outra forma, não seria possível. Contudo, há graus de realização da arte da cover band. É possível fazer um cover insultante e pretensioso que promove releituras que mais dissolvem do que remetem. Há covers incômodos que não conseguem praticar aquele solo em particular – como BasketHead já o fizera como guitarrista do Guns´n´Roses num show em que, surpreendentemente, Guns´n´Roses soava como cover de si mesmo. Outro foi o evento vexatório quando, em 1992, percebeu-se que New Kids on the Block era uma banda que não fazia senão mera alusão do que poderia ter sido. E por fim, aquilo que é o paradigma negativo da história, Milli & Vanilli, que devolveram um Grammy porque, de fato, ao se apresentarem não eram senão a banda cover de Milly and Vannily.








Dos diversos graus em que é possível praticar a falsificação da própria presença, a hipocrisia atinge novos planos quando o ilusionismo participa do evento. Imitar a voz, convidar o resto da banda e fazer as vezes do original até ser tarde demais. Veremos, surpresos, Crosby, Nash & Young cantando Miley Cyrus e seu clássico Party in the USA.

http://stereogum.com/714621/crosby-nash-young-jimmy-fallon-cover-party-in-the-usa/video/

domingo, 29 de maio de 2011

“Olha. Desculpa, tá? Não estou lá muito certo, não sei porque vim, mas sei que precisava. Desculpe, faz muito tempo, acho que até o suficiente para que diga que nunca estive aqui...” do que seguiu um silêncio enorme, extenso e palpável no fundo azul da espera, em que quase tudo, todos se submeteram, sem imaginar o lance incerto do zunido desobediente que em nada alterou; zunido silencioso, forma aguda de impertinência, uma moto. “... e não...”



“Você tá péssimo.”



“Olha. O que eu vim dizer é que, o que eu quero deixar claro é que... bom. Eu estou partindo de vez. E não me olhe assim, não é isso que você entendeu. Estou partindo de vez, mas estou mesmo é me desfazendo, sabe? Quebrando aos poucos, digo, decantando. Estou a alguns dias de ser um poema de Augusto dos Anjos.”

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Autobiografia como contorcionismo







Lee Friedlander, Paris.










(temo não haver mais nada a ser dito, salvo que, fora o aspecto de contorção, há aí uma mímica suicida, não? temo então que isto diga um pouco mais sobre esta história toda, que isto tudo é muito temerário, que dói, que é preciso ter preparo físico e que sou avesso à minha autobiografia.)