quarta-feira, 20 de março de 2013

Faiblesse de croire: moi, encore idiote.


IV- L’idiotie : raisons d’être ce qu’on dit. (continuação, parte II)

Que não se leia aqui qualquer acusação mais violenta às figuras de Durkheim e Mauss. Ainda que o aparte seja honesto, e que o comportamento reticente de ambos ao flerte imediato com os dados da experiência seja mais do que professado, ambos advogam em favor dos direitos dos povos primitivos, ainda que postos sob a tutela vigorosa da Declaração Universal dos Direitos do Homem cujo conteúdo convém avaliarmos mais adiante. Ainda assim, lembrando que um curso oferecido por Émile Durkheim na Sorbonne no ano de (1805) se deu exatamente com vistas em recusar a obra de William James pelo fato desta carecer de sociologia – faço aqui um exame raso e demasiadamente caricatural -, as reticências tem efeitos importantes. No caso, convém resguardar os direitos universais do idiota. Mas um idiota é somente um idiota. É aqui que a intervenção de Michel de Certeau merece atenção, dado que o idiota merece ser tratado também como um brincalhão, um trickster de um tipo bastante especial, daqueles que guardam um segredo.

            “Le secret n’est pas seulement l’état d’une chose qui échappe ou se dévoile à un savoir. Il désigne un jeu des acteurs. Il circonscrit le terrain de relations stratégiques entre qui le cherche et qui le cache, ou entre qui est supposé le connaître et qui supposé l’ignorer (le « vulgaire ») . Selon une tradition illustrée par El Héroe (1637) de Baltasar Gracián, le secret noue, par de liens illocutoires, les personnages qui le chassent, le gardent ou le dévoilent ; ils est le centre de la toile d’araignée que tissent autour de lui des amoureux, des traîtres, des jaloux, des simulateurs ou des exhibitionnistes. Le caché organise un réseau social. » (1882 :133)

            O idiota, se portador de um segredo, joga um jogo. Obviamente que não é qualquer idiota, e não se trata de qualquer jogo. É preciso que seja um idiota que efetivamente guarde um segredo e é preciso que alguém possa ao menos desconfiar que tal segredo exista, subtraindo do vulgo a percepção do que de fato está acontecendo e pondo as cartas na mesa em um ambiente mais reservado das vistas alheias até que alguém possa ser declarado vencedor, ou contemplado pelas benesses de um jogo bem jogado.
            Antes de mais nada é preciso querer saber e querer esconder estabelecendo a ligação potencial entre as duas partes da contenda que, a princípio sequer precisa acontecer. O ato do desvelamento é posto em antecipação pelo artifício da vontade, pelo conhecimento do objeto futuro a ser desvelado e que, neste mesmo movimento, estará escondido até então provavelmente pela própria vontade, porque estar escondido é de sua própria natureza. Vouloir savoir e  vouloir cacher. Ainda que se trate de um tratado sobre a ciência da mística, quando os termos são postos desta forma à maneira de uma relação de vínculo em que o par não equivale, mas é fortemente complementar, é difícil saber enfim quem é o idiota – assim como é difícil saber quem, num ato de exorcismo é de fato possuído pelo diabo.
            Toda a dificuldade do exercício da mística está no reconhecimento daquilo que não pode ser dito e que tem na sua expressão a manutenção do exercício do segredo, da elaboração do código que não leva a lugar algum que não à contemplação do acolhimento da manifestação do símbolo, que em muito pouco tem a ver com a descoberta de um princípio ativo da química que não seja o estatuto do objeto futuro, como Gaston Bachelard estabeleceu com clareza exemplar. Nisso, a manifestação da forma dada como experiência é ela mesma a composição daquilo que se mostrará como segredo, exatamente porque o segredo é a apresentação do mistério, e não a simples ocorrência do mundo. Nos termos de Mircea Eliade, cuja fórmula desconfio mas tem o mérito de ser pedagógica, é a precipitação de heterogeneidade em meio ao espaço e tempo homogêneos – a experiência do sagrado.  Contudo, é a ligação entre os dois campos, entre as duas formas que o problema da mística se dá, é a onde a relevância da hermenêutica cria um conjunto de regras particular, o mesmo que Bruno Latour distingue na operação diferencial de falar sobre religião e falar religiosamente.  No caso, o idiota seria aquele que não sabe distinguir um termo do outro. Será?
            Os santos místicos tem uma peculiaridade que Michel de Certeau faz questão de acentuar. Sua hagiografia pertence a um universo delicado, afastado da crônica evidente dos feitos morais que acontecem no reino deste mundo, cujos milagres operam na forma narrativa palpável. O santo místico vem a conhecer algo mais do que a realizar uma ação específica o que culmina na produção de uma linguagem específica, numa forma de dizer a tradução daquilo que não pode ser dito. É algo semelhante à tese da intradutibilidade da poesia, da obliteração da experiência imediata da língua original, da traição do poeta-criador carregado de um misticismo tão inconfessável quanto sugestivamente concreto. É o caminho dos Doutores Místicos, do corpus de Dyoniso Aeropagita e a longa sequência de investigações conduzidas de forma tão desigual como por St. Tomás de Quino e Sta. Tereza d’Ávila. É no exercício da unificação, da experiência da comunhão e mesmo da sugestão de haver algo específico como é a própria experiência como fonte de conhecimento que a cisão entre formas de conhecer a mesma comunhão se dá. E é aonde encontramos a diferença entre o idiota e o cientista; o louco e o ficcionista.

            “Dans ces exemples, comme bien d’autres, les « voies » ou les figures de la connaissance se modalisent selon une distribution anthropologique ou cosmologique ; elles restent accidentelles et quasi « adjectives » par rapport à l’Unique principe qui les innerve, les correlle et s’y manifeste. Quelque chose d’autre arrive lorsque, parallèle à la division sociale qui renforce et explicite, entre « litterati » et « idiotae », entre riches et pauvres, entre villes et campagnes, l’existence de champs culturels et de types d’expérience hétérogènes, c’est- à dire, l’organisation de la société en espaces différents qui renvoient à des rapports  de force (politiques, juridiques ou rhétoriques) et non plus, essentiellement, à des hiérarchisations de status ou d’ «états », le savoir lui aussi se transforme et s’élucide selon la double formalité d’une spatialisation et d’une opérativité : il sera fait de régions dont la différence n’est pas surmontable, et de méthodes spécifiques à chacune d’elles. » (op.cit. :144)

            Não é por qualquer equívoco lógico que de Certeau aponta para uma determinada genealogia entre a ciência mística e o desenvolver de uma determinada ciência da psique que, destacada do mecanicismo intrínseco à fundação da psicologia pela orientação materialista, dá vazão aos problemas da dinâmica e da identificação, delicada, entre o cientista e o objeto cuja diferenciação revela, dentre outras coisas, o espaço hermenêutico. É aonde o mistério se apresenta em seu primeiro grau.  Atentando aos sinais de distinção, aparece o primeiro elemento expresso pelo pedido de cautela da parte das instituições eclesiásticas com relação à precipitação de novas palavras, produzindo um vocabulário escorregadio como o espaço entre os corpos dos tableaux  de Bosch. Pode-se dizer quase qualquer coisa com a invenção de palavras, o que pode generalizar o estado de idiotia em que tudo opere como impossibilidade de comunicação, da mesma forma que do contrário parece haver um sistema de redução do campo da conversação. No final das contas, a história não oferece alternativa suaves, e tampouco soluções definitivas. Todavia, a demarcação de campos específicos em que se dão distinções permite que alguém como Pierre Bayle possa ter encontrado a manifestação prototípica do obscurantismo religioso. Vale dizer que esta acusação não precisa ser reputada, necessariamente, a um agente externo, um cético por excelência. A racionalização da voz e a operação da palavra em prol da ordem da comunicação eclesiástica, ou burocracia, também impera na definição e nos contornos da fundamentação da parole mystique-religieuse, aquilo que o mesmo Michel de Certeau chamará mais adiante de politique de la langue, com relação à ocasião da reforma da língua francesa pelo esforço monumental conduzido pelo abade Henri Gregoire a partir de 1790. 

sexta-feira, 15 de março de 2013

As regras do jogo: ácido acídico.


“Porque a boca come ao contrário, também. Ainda que devore com maior dificuldade, se contorcendo para deglutir o massivo que se esconde por trás da mucosa, come ao contrário. Não falo do regurgito ou de outras formas de descomer que fazem gatos soltarem moedas de centavos ânus afora, mas de uma boca que devora ao contrário, rebelde, consome o mesmo a quem em outra vez serviria o alimento devidamente apaziguado. E o faz de boca fechada de calar os meninos mal-criados, os falastrões afobados ou outro tipo de gente sem boa formação. Entenda. É o contrário do bocejo, que é a forma de vórtice que tudo devora sem jamais saciar o que precisa. É cerrar a boca e comprimir quando o movimento é o de saída. É, por fim, não dizer o que consome. O caso é que há verbos, sentenças e predicações que, quando parados no canto da sala são corrosivos e imediatos e, uma vez neste estado alquímico, corróem a tudo que encontram no caminho de forma assídua mesmo quando postos para correr, destruindo móveis, abat-jours e mesmo, gente.  Uma vez manchando a parede ulcerosa do desatino, o melhor a fazer é buscar um buraco profundo e se enterrar em silêncio, deixando o chorume escorrer sem qualquer registro publicitário e, com vistas em sobreviver mais um dia, contaminar o solo com a sombra pequena à qual o corpo se sobrepõe à perfeição. Deixar escorrer, no entanto, ainda que já devidamente sepultado, não implica em dissolver mas, ao contrário do ácido esperado, só faz concentrar. Dito de outra forma, quando neste ponto, é um labirinto sem paredes cuja trama não tem fim. E então, socorro.”

Ponto e dimensão. Foto de Refrator de Curvelo.
Quando já é tarde para ter sido coisa melhor. 

segunda-feira, 11 de março de 2013

Notas da torre de observação: la faiblesse de croire est faible encore


IV- L’idiotie : raisons d’être ce qu’on dit.

            O percurso das pesquisas sobre religião, com relação ao qual eu sou neófito, parecem marcar uma dificuldade cada vez maior em haver precisão em endereçar as questões a um rumo preciso. A ironia do problema está exatamente na busca de um sistema classificatório preciso que determine o que viria a ser a religião de um ponto de vista comparado, reunindo a humanidade antropológica, isto é, abraçada por uma só disciplina de investigação, ao redor da evidência empírica da espécie. Assim, a incorporação da história sagrada à história natural tem a consequência pesada de encontrar a vida religiosa aonde houver vida humana sem conseguir determinar se há precedência de um dos termos sobre o outro. Ainda assim, uma aporia persiste que é conferir uma relação consistente entre o significante religião (cuja raiz filológica, segundo as investigações de Émile Benveniste em seu vocabulário das línguas indo-européias relembra a dicotomia hermenêutica entre reconstituir o termo a partir, ou do relegere de sua preferência, ou do religare que considera ser uma perversão da filologia católica), repito, a aporia está em estabelecer uma relação consistente entre o significante religião e um significado que consiga oferecer suporte à variedade da vida religiosa – e a remissão à William James é proposital uma vez que é dele o exercício de conformar a vida religiosa a um ato, a uma vontade, a de ter um universo para chamar de tu, segundo a fórmula peculiar de seu seminário Will to believe. A taxinomia que preside as ciências da religião, nos moldes do pensamento moderno opera não somente na chave filológica mas, em geral, em um fundamento filogenético em que a religião precisa responder a um fundamento de origem que seja, antes de tudo, cronológico em que o enredamento de causas respeite o estalo criativo, ou criador. Ainda que criação pareça ser uma constante mitológica, e de certa forma, parece ser, aquilo se cria e a partir do quê se cria é uma questão a parte, uma vez que não são poucos os mitos que narram a criação do mundo a partir de um mundo, sem demarcar qualquer marco zero repetindo a máxima de Macedónio Fernandez de que o mundo foi inventado antigo. Religião não é um assunto para principiantes, mas também não parece ser um assunto para o conselho de sábios. Ao menos, não de qualquer forma.
            O vocabulário semiológico a partir do qual Michel de Certeau descreve o problema da religião como categoria está diretamente ligado tanto às fontes de uma leitura de Ferdinand de Saussure quanto às dificuldades impostas pela racionalização da ordem eclesiástica à vida do espírito. A figura sociológica da gaiola de ferro, ou a resposta da Husserl às ciências experimentais de laboratório tal como exposto em Krisis, ou a reconstituição da esfera produtiva no ato da troca financeira operada por Simmel em Philosophie des Geldes pertencem de alguma forma este mesmo domínio no qual a fixação do termo daquilo que é afasta o agente daquilo que ele mesmo faz. Cria uma mediação para a qual a expressão é obrigatória para que haja conciliação dos termos de comunicação entre agentes que devem se relacionar para além da pessoalidade. Mas aquilo que aponta como conciliação é, para todos os efeitos a remissão a um procedimento comum, ponto no qual parte significativa da história moderna, naquilo que ela tem de especificamente moderno, converge para uma história da burocracia e sua coordenação estatística daquilo que pode e deve ser encarado como algo comum, ou sociologicamente relevante – justificando inclusive o impacto da sociologia na teoria do conhecimento.
            Não são poucas as conexões entre aquilo que é possível conhecer na era moderna e sua conformação na linguagem jurídica, assim como a elaboração de termos e fundamentos jurídicos organizados a partir do sistema da natureza, se posso fazer aqui menção ao projeto Iluminista que perpassa a história francesa desde d’Holbach até Auguste Comte. Não foi outra a conduta libertina durante a caça às bruxas na França do século XVII, e uma certa historiografia da ciência aprofunda o vínculo entre direito e ciência moderna, cabendo mencionar mais fortemente as pesquisas de Barbara Shapiro e Lorraine Daston. O caso é que este vínculo tem desdobramentos que vão além da mera supressão dos atos públicos de superstição e intolerância religiosa. O vínculo entre ciência e jurisprudência, para fins de segurança, interrompe a conexão entre a experiência e a experiência ela mesma sob a acusação de sedição, isto é, de interromper a relação da mediação com a mediação ela mesma. Não é que os poderes constituídos façam isso todo o tempo, mas podem fazê-lo quando for legítimo ou mesmo, quando for possível a depender da configuração das linhas de força que demandem a evocação do monopólio da violência, em nome do procedimento. E é por isso que a figura do idiota é importante, ou ao menos didática para que este problema se ponha, sem que seja atingida a radicalidade polêmica do caso da loucura e das instituições de saúde mental que criaram a tensão, pouquíssimo considerada entre as teses de Michel Foucault e Marcel Gauchet.
            A verdade é que eu mal comecei a ler o livro de Alain Supiot, sobre a função antropológica do direito, para ver imediatamente a tensão constitutiva daquilo que elegi como pesquisa, o mesmo tipo de incômodo que conduziu Victor Turner de uma análise estritamente funcionalista para a análise simbólica das relações diretas com o sagrado: o problema da experiência como constituinte das relações fundadas, com solo, convergência e dispersão (o disfórico, frequentemente negligenciado nas análises que portem algum caráter sociológico).  Supiot (2005) começa seu livro com o argumento filogenético no qual a emergência do sentido tal como expresso pela linguagem se dá na mesma chave do exercício da determinação da lei como fenômeno socialmente relevante. Algo na chave da relação entre a fundação da sociedade e o pressuposto inapelável da proibição do incesto, mas com marcas um pouco mais delicadas.

            “ Les liens du Droit et liens de la parole se mêlent ainsi pour faire accéder chaque nouveau-né à l’humanité, c’est-à-dire pour attribuer à sa vie une signification, dans le double sens, général et juridique, de cet mot. Coupé de tout lien avec ces semblables, l’être humain est voué à l’idiotie, au sens étymologique du terme (grec idios : « qui est restreint à soi-même »). Est pareillement menacé d’idiotie celui qui, enfermé dans sa propre vision du monde, est incapable de comprendre qu’il en est d’autres possibles, c’est-à-dire incapable de s’accorder avec ses semblables sur une représentation du monde où chacun ais sa juste place. L’aspiration à la Justice n’est donc pas le vestige d’une pensée préscientifique, mais représente, pour le meilleur e pour le pire, une donnée anthropologique fondamentale. L’homme peut tuer et mourir pour une cause qu’il estime juste (sa Liberté, sa Patrie, son Dieu, son Honneur, etc.) et de ce point de vue il y a en chacun de nous une bombe. » (2005 :09)

            Pois que o rumo em direção à justiça é, por sua vez a produção e o recurso à Lei que opera em analogia – difícil saber até qual ponto, em identidade – com a linguagem. A ascese à Lei e humanidade são um só processo, a matriz do sentido e da ordem impulsionada pelo senso de Justiça. E a ordem é fruto da regência de um Legislador original, que serve como Legislador. E no meio disto, o idiota, perdido em sua incapacidade ou mesmo sua carência, a forma mais frágil de ser fora da lei.
            No anseio de produzir um sistema classificatório abrangente que permitisse um sistema comparativo, ou mesmo uma legislação que abarcasse a variedade religiosa segundo sua função social, invenção esta do processo revolucionário de 1789, e não da sociologia francesa como se imagina, prossegue naquilo que é, no final das contas a definição de uma regra. Ou melhor, um regulamento daquilo que não somente é ou não, mas daquilo que é ou não relevante como religioso. Nisso, a apreciação e, ao mesmo tempo condenação da obra de William James por Marcel Mauss operando exatamente na mesma chave que nos leva de volta ao trabalho de Michel de Certeau sobre a idiotia no qual um idiota, ao conseguir ler, talvez venha a se reconhecer com maior felicidade – da mesma forma que a proposição da comunicação esquizofrênica traz o esquizo para conversar. Sobre o que for. 

quinta-feira, 7 de março de 2013

Então, depois.


Dormir e acordar com o sol
Para então, já calejado pelo trabalho,
Torto, arranhado pelo calor,
Arquejado pela lida longa,
Convertendo trabalho em dia,
Canção em apelo, dor em
Ornamento, esforço em carinho,
Diário e penitente, o sol, ele mesmo,
Freqüente e implacável logo mais
desce longe, até seguir para outra jornada
Na qual desaparece e dá lugar à lua
Sem jamais deixar de transmitir
A luz, que é sua, e que a lua só é
Toda nua quando alguém intervém. 

quarta-feira, 6 de março de 2013

Os pássaros, o gorjeio, e o idiota vizinho de Godofredo


            “O desejo maior não teria, o de ter acordado algo animado. Não poderia ser porque o sono já domado havia sido engaiolado para que cantasse em coro com os pintassilgos do vizinho. O desejo maior era o de não se transformar subitamente num idiota no percurso do dia. O desejo era não se transformar num idiota subitamente sem ter feito nada de diferente nos últimos meses e então, como uma pedra, saber ter sido um idiota. A vontade era tirar o sono da gaiola, ainda que o medo de que alçasse vôo frenasse a mão alguns instantes antes do momento derradeiro. Mas queria dormir porque a idiotia súbita lhe dava tamanha tristeza que todo ímpeto sumia. Mal olhava para o outro lado, só para saber quem fazia barulho na calçada e lá ia o ímpeto entrar na gaiola para cantarolar hinos cívicos acompanhando a passarinhada do major Godofredo. Ainda que pudesse ser saudoso das campanhas produzidas durante a ditadura, e que professasse um revisionismo tão profundo do processo de 1964 que beirava a negação da presença de militares no golpe de Estado feito à contra-golpe, o major Godofredo tinha tendências mitômanas ainda mais particulares. Haja visto que ele assobiava o zunido tonto gorjeado pelo sono, e não os hinos que seus passarinhos cantarolavam. E agora, o dueto do sono com o ímpeto, algo semelhante a uma versão de viola para um bolero foi imediatamente incorporado ao repertório de silvos e trinados do major. Não me lembro de ouvi-lo acompanhar seus passarinhos uma só vez e quem lhe faz companhia foram sempre o sono e o ímpeto. Godofredo sabia, assim, que seu vizinho havia se transformado em perfeito idiota. O arranhado de um certo Fá menor cruzou a marca do zero e jogou a temperatura da sala de jantar para algo ainda mais frio.
            Idiota súbito, pensava, espirando em golpes de ar que cobriam os pés de vento. Idiota súbito, até que se dava conta de que há pouco de súbito na idiotia repetida no universo de dois, três, seis meses. O estado prolongado da confusão,  o longo período em que a farsa mais verossímil caminhou de mãos dadas com o sono e, então o ímpeto, engaiolados na companhia sonora do major Godofredo repetiu à meia-voz a máxima de que o melhor esconderijo de algo está em sua maior publicidade, feito a carta roubada. Assim, cantarolava tabém com a confusão, levando-a para passear, dando-a de comer e participando de suas apresentações na escola desde que aprendera a ler e a escrever participando da farsa de ser o idiota que logo é. Nada de súbito, não acordara idiota, não fora nada senão o longo tempo, o percurso no qual a idiotia saiu da gaiola sem ter dela fugido sequer por um segundo. Restava saber se uma vez ciente de sua estupidez maior sairia mais uma vez na rua reportando de forma inocente todas as coisas tontas que um idiota da aldeia pode cometer  andando de mãos dadas com a confusão, ou se quebraria a personagem violando por fim, a trama. Mas a esta altura, embalado pelo som de mais um bolero a três vozes a imagem de não ter mais ninguém para enganar parecia lhe dar a vantagem de dois corpos sobre si mesmo. Restava então eleger os dois corpos, no que, para fins de harmonia do desenho deveriam ser, mais uma vez, a confusão e a idiotia. Restava, a esta altura, alguma noção de procedimento. Há todo um universo de turbilhões entre correr atrás da confusão e da idiotia e, por outro lado, conduzi-los pelas mãos simulando a mesma correria. Esta deveria ser, por fim, esta história narrada com a trilha sonora dos boleros a três vozes, as de Godofredo, ímpeto e sono. Os últimos, agrilhoados, só poderão rumorejar gorjeios sagrados de Ângela Maria.”