Alberto Giacommetti, meu vizinho, tomando chuva na Avenue Alésia, esquina com Hyppolite Maindron. Na verdade, não é aonde ele está, mas é como se fosse. Fotografia de Henri Cartier-Bresson. |
KSELMAN, Thomas A., Death and the afterlife in modern
France. Princeton. Princeton Press. 1993.
Vim a Paris
com a mala cheia de mal-estar, preconceitos e outras virtudes. Como soem às
virtudes, as que nutro pela França parisiense – e creio que todas as vezes em
que eu escrever França, parece que faço alguma delação de Paris – me causaram
alguns prejuízos. Felizmente, até então, nenhum de entendimento. Sendo
compreender alguma coisa o meu trabalho, tenho dormido mal. Mas não por isso.
Durante os meus primeiros 6 meses em que estive na Cidade Luz jamais consegui
abandonar a impressão de que morava em um Museu do qual não consegui encontrar
saída que não fosse as Portes que levam o transeunte a extra-muros.
Seguramente, os edifícios (bâtiments) legendados não ajudam a
fazer vazar essa impressão que só fez fortificar. Por todos os lados da Paris
intra-muros há placas indicando alguém que fez algo digno de notificação
museográfica que por ventura veio a residir no endereço, ou mesmo que um evento
de proporções ainda maiores veio a se dar singularizando-o como signo da Grande
História Francesa, como o caso das crianças judias que foram entregues pelas
escolas em que estudavam direto para o extermínio nazista em movimento
capitaneado pelo governo Vichy. Assim, como parto do egoísmo que só se
justifica por ser moeda de troca, posso dar minha direction, 53 Rue du Moulin Vert – 75014. Estou, no instante em
que redijo essa nota, a pouco mais de 20 metros do bâtiment que veio
a abrigar Alberto Giacommetti por toda a sua vida artística. Esta mesma casa
está a pouco mais de 20 metros, por sua vez, de onde Henri Cartier-Bresson
fotografou o escultor italiano encapotado até as orelhas, atravessando a rua
Hyppolite Maindron, cruzamento com av. Alésia. Se atravesso em direção
contrária ao caminho tomado por Giacommetti eu chego até a boulangerie aonde
compre baguette todos os dias que, como todas as demais enfatizam que é
possível comer pão como outrora, isto é, à la tradition. No papel de
embrulho da Fermière Blonde, ou da Loira é possível encontrar uma criança
emburrada com os cotovelos jogados sobre a mesa. A fotografia está do lado do slogan “ON NE TOUCHE PAS À MA...
TRADITION!”. Também não foi difícil
descobrir que no hotel Brésil, ao lado do Jardim de Louxembourg, o notável
Sigmund Freud gastou uns trocados para residir dois ou três meses. E eu aqui,
por 6 meses, contados no relógio.
Sei que a
idéia de um mero museu soa desonesta, preconceituosa e injusta, porque tem todo
um universo se fazendo ao redor, com pessoas vivendo suas vidas e criando a
tudo e a todos na medida do possível. Entendo. Mas quero dizer que isso não tem
nada a ver com Paris. Recebi desagravos por correspondência diretamente do
Ministério da Cultura por causa do que vinha falando nestes últimos meses,
enfurecendo alguns cidadãos mais articulados com a vida cultural da cidade. Fui
acusado de tétrico. Vale notar que a ideia, à época, estava apenas em gestação.
Não me entendam mal. Fui mal compreendido. Não é possível dizer que se trata de
um museu a céu aberto se não incorporarmos a dimensão de que se trata, no
limite, de um cemitério perfeitamente cercado no qual a honra e a glória da
França se manifesta pela referencia lapidar do culto aos mortos. Por todos os
lados. Os heróis, os justos, os injustos, os anônimos e mesmo, os desconhecidos
e os inventados.
A nota 55 do
capítulo 4 de Thomas A. Kselman é incrivelmente didático com relação a isto.
“The political and social implications of the cult of the dead as
developed over the part three centuries are treated in a number of the essays
in the recent collections edited by Pierre Nora. Although the work of Nora and
his collaborators is scholarly in its design and presentation, it can also be seen as the latest manifestation of the
cult of the dead that it examines. See Mona Ozouf, “Le Panthéon – l’École normale de morts », in Pierre Nora, ed. Les Lieux
de Mémoire, vol. 1, La République (Paris: Gallimard, 1984), 139-166;
Jean-Claude Bonnet, “Les Morts illustres
– Oraison funèbre , éloge académiques, nécrologie”, in Pierre Nora, ed. Les Lieux de Mémoire, vol. 2, pt. 3, La
Nation (Paris, Gallimard, 1986), 217-241; June Hargrove, “Les Statues de Paris”, in ibid., 243-282. For an overview of the
political uses of funerals from the revolution through the Third Republic see
Ben-Amos, Molding th National Memory.
For the revolution see also Albert Soboul, “Sentiment religieux et cultes populaires pendant la revolution:
Saintes, patriots et martyres de la liberté”, Archives de Sociologie des
Religions 1 (1956), 73-87”.
Resta saber
um coisa, digo, com relação a quem cada monumento faz relação. O leão da Place
Denfert-Rocherau é o símbolo do esmagamento da revolução de 1871, conflito que
culmina no maior óbito civil do século XIX francês. Deste símbolo monumental e
ainda mais solitário do que o da Place de la Bastille advém o frenesi das
linhas perfeitas, a longa linhagem do urbanismo produzido pela Reforma. Digo, a
reforma Haussmann, nome que é somente o bico do seio, a ponta do iceberg tal
como meu amigo Mathias Schelp insiste em me lembrar. Republicana ou não, a
França gótica enterra seus mortos com alarde.
O túmulo do Barão Haussmann, localizado em qualquer interseção ou boulevard. Fotografia de Refrator de Curvelo Guarani Kayowá. |
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