quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Religião para Lelés da Cuca: genealogia da moral


BATAILLE, Georges. L’expérience intérieure. Gallimard. Paris. (2012 [1947])
______________________. Théorie de la religion. Gallimard. Paris. (2011[1973])
NIETZSCHE,  Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. Companhia das
Letras. São Paulo. 2001.

I-

Todos temos amigos, ou ao menos é o que parece ser. De qualquer forma é algo que só podemos intuir. Não há muito o que fazer senão, nesta altura, desconfiar que sim. Porque se trata de correspondência fugaz, desconfiada dos sinais que emitimos e por isso, desacertada, dos sinais que recebe em troca. Que haja desconfiança quanto a quem é ou não é amigo, mas o que dos inimigos se sabe é que quem é, o é por justa razão, porque obstrui o caminho, especialmente no ato da caminhada. Trancar a rua, é o que parece, sendo o suficiente como código, e que basta odiar e, mais do que isso, eliminar o obstáculo que define o exercício da inimizade, desde o obstáculo até o extermínio de uma das partes. Nisto boa parte dos folhetins que dispomos define ser o ato de inimizade e o caminho  de uma trama magistral aquela que elimina da superfície terrestre o corpo político chamado de "empecilho". Inimigos que, por fim, carregam consigo todos os sinais de fraqueza e da incompreensão da escala da relação que faz desentender no mesmo golpe as dimensões da violência, aquilo que é bom e aquilo que é mal.
Nietzsche é responsável por uma passagem delicada em que investiga o legado judeu para a emergência de uma certa noção de inimizade na conformação de uma moral moderna, a mesma que desenha a forma de determinar o bom, o mal, o belo e o feio sem que seja reconstituída a genealogia que dá conexão entre estes termos todos. O bom e o mal, o belo e o feio, o bem e o ruim/mau não são a mesma coisa, diriam alguns; ora, responde o filólogo da genealogia, a palavra dirá aquilo que eu quiser que ela diga caso eu seja nobre, forte e valoroso - afinal este jogo da potência que permite que algo como o batizado ocorra. Dá nome quem pode, não quem quer. E que por agir na instituição de um domínio e que por isso eu seja signo de nobreza, beleza e bondade, que se deixe o contrário como mero exercício do negativo, sendo vil aquele que não age com nobreza. E é no sacerdócio que esta operação tomará uma outra dimensão, aquela em que não é preciso conciliar o ato de nobreza com a nobreza que se porta fundando uma ordem, uma organização sem corpo, uma autoridade de chancela. Uma moral sem risco da bondade impessoal e da maldade corporificada. O sacerdócio dos escravos, a herança judaica para quem a guerra é um mau negócio vindo a forjar a vingança por via da tresvaloração, o que logo em seguida o mesmo Nietzsche chama de vingança espiritual (2001:26) em que se deu a beatificação da impotência.
Que se leia do legado de Nietzsche como anti-semitismo seria simplesmente resultado de pressa o que, contudo, não impede tal interpretação. Afinal, diriam alguns, é preciso se proteger do inimigo. Seguramente que o esmalte da figura judaica sai arranhada da acusação, mas não é o judeu enquanto tal quem afronta a potência humana de ser, mas a personagem que  exercita a sua desfiguração do inimigo a quem não se deve senão desprezo e que, por ordem da inversão judaica levada ao ápice pelo cristianismo teria levado à reles maldade, redução ao mínimo múltiplo comum de uma existência comprimida a uma só dimensão. O que está em questão é o inimigo, aquele contra quem há de se indispor e que, reduzido ao aspecto mais vil e ignóbil, à mera maldade reduz a contenda ao mesmo ponto, ao mesmo termo em que só é possível ser um inimigo como alguém a ser exterminado. O que daí desdobra é um elogio a Mirabeau quem não conseguia cultivar quaisquer sentimentos por seus inimigos a quem não desculpava porque se esquecia. Esquecia-se especialmente da ofensa.

Um homem tal sacode de si, com um movimento, muitos vermes que em outros se enterrariam; apenas neste caso é possível, se for possível em absoluto, o autêntico “amor aos inimigos”. Quanta reverência aos inimigos não tem um homem nobre! – e tal reverência é já uma ponte para o amor... Ele reclama para si seu inimigo como uma distinção, ele não suporta inimigo que não aquele  no qual nada existe a desprezar e muito a venerar! Em contrapartida, imaginemos “o inimigo” tal como o concebe o homem do ressentimento – e precisamente nisso está seu feito, sua criação: ele concebeu “o inimigo mau”, “o mau”, e isto como conceito básico, a partir do qual também elabora, como imagem equivalente, um “bom”- ele mesmo!...”(Nietzsche, 2001:31)

Que a genealogia seja um equívoco[1], que tenha apontado para o agente errado, eis algo a ser discutido. Mas não é necessariamente o agente que está em questão mas a precipitação da agência e de um certo dispositivo formal no qual a projeção da impotência como forma de poder tenha transformado a relação de inimizade na purgação do mal que ronda, cerca e invariavelmente mata e que, assim, deve ser reduzido ao mínimo que logo é. Que não seja o judeu como pessoa mas como efeito, o poder exercido por via do sacerdócio contra a nobreza, como efeito em que o inimigo é uma ameaça completa fazendo da contenda o exercício das formas vis forçando a uma atitude contrária à vida e ao exercício da potência: a de si e a de outrem. Reduzir a vida ao mínimo comum fazendo do inimigo alguém a ser exterminável porque do ponto de vista do valor ele já não faz diferença alguma, ou quando o faz figura nas sendas do dispensável, quando não do degenerado. A dificuldade de enunciar este ponto de vista, contudo, só não é maior do que o esforço em aceita-lo. Por diversas razões.
Uma forma de fazê-lo é mudar as personagens e alterar a escala da relação. Outra é introduzir questões relativas à distinção entre ação e agência com vistas nos conteúdos e dispositivos que determinam pessoas, coisas e movimentos. Nada disso se faz diretamente pela genealogia da moral, mas não deixa de ser possível fazê-lo no cotejo com outras fontes. Bataille, por exemplo que ao seguir no anti-dogmatismo, que é na verdade anti-papismo radical, recusa a noção de autoridade e do conceito de projeto para reduzir toda autoridade possível ao pré-discursivo, ao não proferido ou melhor, ao silêncio loquaz. Recusa até mesmo a noção de mística para não oferecer oportunidade para a reintrodução de uma ordem eclesiástica qualquer no universo da potência, reproduzindo assim a redução ao extinguível. A experiência interior, reduto da única autoridade que autoriza, plano da imanência, fluxo que corta e cola, a certeza que se desfaz quando algo é dito. Mas quando a assertiva parece formar corpo e conduzir para uma direção gloriosa, a que redime a humanidade fazendo com que venha de encontro com ela mesma, aparece a Guerra – questão que jamais incomodaria a nobreza serralheira de Friedrich Nietzsche porque até então o que havia era a guerra, no minúsculo. Nela encontramos o horror maior, mais definitivo e marcante que o horror da experiência interior, outra forma de arrebatamento.

L’horreur de la guerre est plus grande que celle de l’expérience intérieure. La désolation d’un champ de bataille, en principe, a quelque chose de plus lourd que la « nuit obscure ». Mais dans la bataille on aborde l’horreur avec un mouvement qui la surmonte : l’action, le projet lié à l’action permettent de dépaser l’horreur. Ce dépassement donne à l’action, au projet, une grandeur captivante, mais l’horreur en elle-même est niée. » (2012 :58)


[1]O primeiro impulso para divulgar algumas das minhas hipóteses sobre a procedência da moral me foi dado por um livrinho claro, limpo e sagaz – e maroto – no qual uma espécie contrária e perversa de hipótese genealógica, sua espécie  propriamente inglesa, pela primeira vez me apareceu nitidamente, e que por isso me atraiu – com aquela força de atração que possui tudo o que é oposto e antípoda. O título do livrinho era A origem das impressões morais; seu autor, o Dr. Paul Rée; o ano de seu aparecimento, 1877. Talvez eu jamais tenha lido algo a que dissesse “não” de tal modo, sentença por sentença, conclusão por conclusão, como a esse livro, não para refutá-las – que tenho eu a ver com refutações! – mas sim, como convém num espírito positivo, para substituir o improvável pelo mais provável, e ocasionalmente um erro por outro.”(2001:10)

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Who Am I, Jackie Chan? V - o martelo de Talal Asad


ASAD, Talal. Genealogies of religion: discipline and reasons of power in Christianity
and Islam. Johns Hopkins Press. Baltimore and London. 1993.

GEERTZ, Clifford. The interpretation of cultures. Basic Books. Nova York.
1973


5-

            The argument that a particular disposition is religious partly because it occupies a conceptual place within a cosmic framework appears plausible, but only because it presupposes a question that must be explicit: how do authorizing processes represent practices, utterances, or dispositions so that can be discursively related to general (cosmic) ideas of order? In short, the question pertains to the authorizing process by which “religion” is created.”(Asad, 1993:37)

            Num só salto,  ao questionar a definição sugerida por Geertz, Asad não somente contesta o conteúdo da redação do antropólogo liberal e, digamos, demasiado moderno – ¿humano? Afinal, com qual autoridade ele se permite escrever este tipo de redução ao simbólico? Que não me entendam mal pois ainda que eu dê a entender que há aqui uma pulsão de censura em Asad o que há de fato é uma pergunta. Pois se o simbólico opera como força de orientação auto-suficiente centrífuga cuja fonte teórica mais evidente se encontra na filosofia do simbolismo de Susanne Langer e Edmund Burke, resta saber como opera a definição da ortodoxia, isto é, das regras de uso do mesmo complexo simbólico. ¿Quem é que diz que é assim que se diz e, num segundo momento, faz fazer de tal forma?, que é o mesmo que dizer que Geertz se esquece de si mesmo, um autor que produz uma definição de religião potente o suficiente para vir a sofrer mais uma contestação 37 anos depois de sua publicação original, e 20 anos depois de sua primeira edição no mercado editorial dos EUA. Ainda que todos possam ser autores, e aqui o diálogo sobre a potencia tem razão de ser, uns são mais autores do que outros e para segui-los é preciso disciplina e algum grau de superação – e aqui Asad tem algo de Harold Bloom. É este horizonte, o do avanço das fronteiras da modernidade como secularização, ou privatização do religioso tocado a golpes de iluminismo que Asad parece querer conter especialmente a partir do congelamento de mais uma definição universal de religião que opera a despeito do que dizem e fazem as religiões, elas consigo mesmas. Inclusive obrigando-as a serem quando em um primeiro momento isto não fora questão.
            O artigo sobre a “religião como categoria antropológica” denuncia a máxima do “manda quem pode, obedece quem tem juízo – transcendental” estabelecendo uma genealogia algo sumária da seu conceito moderno – exercício que se desdobrou em uma série de outras reflexões críticas  como as levadas a cabo por Johnathan Z. Smith, Tomoko Masuzawa e Brent Nongbri. O exercício genealógico que procura os rastros pelos quais uma forma de pensamento opera como problema visa reconstituir não somente a configuração da autoridade mas também as linhas de força dos dispositivos de autorização a respeito da determinação dos símbolos sagrados e sua exegese fazendo as vezes de uma eclesiologia crítica. A ecclesia se move como operadora do controle social do sentido, deixando para trás algumas das marcas dos fatores coercitivos da apreciação do símbolo[1]. O mesmo exercício genealógico, por imposição do tema, narra, ele mesmo, uma pequena história da secularização – história expandida por Asad em Formations of the secular – fazendo um par inusitado com o exercício de literatura comparada de Luiz Costa Lima e sua trilogia sobre censura e o “controle do imaginário”. Como parte do problema está no vínculo - ¿duplo vínculo? – entre autoridade e secularização, é preciso pôr em perspectiva, a cada movimento a formação da ante-câmara a modernidade, a mesma que transpõe o feudalismo na forma do absolutismo mercantilista como plano original e fundação moderna do estabelecimento ou fixação do texto, qualquer texto, na forma de um código.
           
            The medieval Church was always clear about why there was a continuous need to distinguish knowledge from the falsehood (religion from what sought to subvert it), as well as the sacred from the profane (religion from what was outside it), distinctions for which the authoritative discourses, the teachings and practices of the Church, not the convictions of the practitioner, were the final test. Several times before the Reformation, the boundary between religious and the secular was redrawn, but always the formal authority of the Church remained preeminent. In later centuries, with the triumphant side of modern science, modern production, and the need to distinguish the religious from the secular, shifting, as they did so, the weight of religion more and more onto the moods and motivations of the individual believer. Discipline (intellectual and social) would in this period, gradually abandon religious space, letting “belief”, “conscience”, and “sensibility” take its place. But theory would still be needed to define religion.”(Asad, 1993:39).


[1] O que é peculiar é que as restrições do conceito de religião se dá à expensas da universalização, por contrabando, da noção de ecclesia. Sua incorporação ao aparato da religião comparada, até onde sei, se dá a partir da obra sociológica de Ernst Troeltsch que em sua precaução se restringiu a formular problemas relativos às igrejas cristãs fonte da cisão entre ecclesia e communitas. O divórcio entre uma instância e outra na reflexão sobre a religião e a secularização da mesma se deu de tal forma que hoje parecem dimensões não somente apartadas como irreconciliáveis no mesmo argumento, como dramatiza a tensão Asad/Geertz. Este, contudo, não pode deixar de ser um problema para o qual toda a atenção futura terá sido pouca.

Who am I, Jackie Chan? IV - fazendo graça com o que não deve


ASAD, Talal. Genealogies of religion: discipline and reasons of power in Christianity
and Islam. Johns Hopkins Press. Baltimore and London. 1993.
GEERTZ, Clifford. The interpretation of cultures. Basic Books. Nova York.
1973.

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4-
           
            A discussão a respeito da noção de agência aplicada ao problema da autoria, ou da propriedade dos efeitos que em metafísica pode ser condicionado ao díptico causa eficiente/design inteligente assume outras proporções quando a discussão assume sua forma propriamente jurisdicional. Dito de outra forma, quando o que está sob observação a mais escrupulosa é exatamente a determinação do poder soberano, por um lado e de outro, a constituição do ato e do agente criminoso que tomam à forma de um amplexo os extremos que ativam a identificação codificada de agentes obsessores, por um lado que recheiam a bibliografia produzida por Michel de Certeau, Robert Mandrou, Julio Caro Baroja, Keith Thomas e Sarah Ferber. De outro lado delineia a forma do monopólio da organização dos componentes psíquicos pela clínica e pelo direito cuja historiografia de Michel Foucault, Marcel Gauchet, Ruth Harris, Jacques Donzelot, Christian Phéline, Robert Darmon e os ensaios de Philipp Rieff e O Anti-Édipo de Deleuze e Guattari descreveram à exaustão. Dito de outra forma, instituem de poder os agentes que podem, os que não podem e os regimes de existência algo explorados pela arqueologia foucaultiana e que tem um papel de destaque na composição da modernidade histórica narrada a partir da linha da secularização. São operadores de determinação ulterior das figuras presentes nos limites e no além da jurisdição. É aí que a tensão entre Geertz e Asad atinge seu ápice e, penso eu, sua maior relevância exatamente porque via Geertz nada parece existir com maior grau de realidade dado que restrito ao terreno do simbólico – que é o que existe no lugar de outra coisa numa forma de existência derivada próprias à definição mais agressiva de semiótica da comunicação humana, e especificamente humana como ele faz questão de enfatizar no ensaio sobre o impacto de conceito de cultura no conceito de homem – segundo capítulo de The Interpretation of Culture.
            De outra forma, à maneira de Asad, o universo do discurso sempre sugere franjas e bordas, ou um mais além da linguagem que define o empreendimento humano de forma abrangente. Da antropologia também, como crítica e produtora de poder. A comunicação humana reduzida a si-mesma parece ser condicionada por um projeto de paz perpétua que acompanha esta forma mitigada de religião natural desde o iluminismo escocês de David Hume, cuja concretude ou sua evidente falta forja a principal razão de sua recusa e, no pacote, a recusa da ética implicada na condução até o ponto em questão.
            O itinerário programado por Asad não é especificamente uma agenda contra-Geertz propriamente dita, mas contra aquilo que o projeto de Geertz ironicamente representa dado que demasiado dedicado na reprodução do confinamento e da defesa de uma religião confinada (Asad, 1993:28), isto é, de uma atividade simbólica de agência tutelada, o que é uma das especialidades do Estado moderno. Obviamente que esta é uma forma grosseira de apresentar a antropologia de Clifford Geertz, salvo se retomarmos a frase. Disse que Asad se indispõe contra aquilo que a antropologia de Geertz representa, isto é, contrária à versão cômica dos universais humanos que na forma de antropologia são registrados em livros, filmes e museus e que, uma vez sumariados compõem um catálogo de traduções  semióticas de textos culturais. Rigorosamente a humanidade emerge como pura mediação com força de agência, é o objeto em lugar de outro por excelência numa diluição homeopática da eucaristia. Visivelmente é a contraproposta liberal para as instituições medievais que eram, antes de mais nada, cristianismo público e não privado. E é esta alteração que serve de evidência quanto aos limites da definição de religião via Geertz:

            Let us, therefore, reduce our paradigm to a definition, for, although it is notorious that definitions establish nothing, in themselves they do, If they are carefully enough constructed, provide a useful orientation, or reorientation, of thought, such that an extended unpacking of them can be an effective way of developing and controlling a novel line of inquiry. They have useful virtue of explicitness: they commit themselves in a way discursive prose, which is this field especially, is always liable to substitute rhetoric for argument, does not. Without further ado, then, a religion is:

            (1) a system of symbols which acts to (2) establish powerful, pervasive, and long-lasting moods and motivations in men by (3) formulating conception of a general order of existence and (4) clothing these conceptions with such an aura of factuality that (5) the moods and motivations seen uniquely realistic.

            a system of symbols which acts to…”(Geertz, 1973:90-91)

            O interessante é que Asad cita o elenco em tópicos sem mostrar ao seu leitor o que é a definição de “definição” para Geertz como se os tópicos bastassem como representativa de um universalismo qualquer sem se aproximar da postura de Geertz como autor ou então, mais condizente com a crítica em questão, como autoridade. Ao fazê-lo parece, contudo, perder o mais importante pois é quando Geertz se mostra como uma espécie de comediógrafo liberal à forma de Harold Bloom (Abaixo às verdades sagradas) ou Richard Rorty (Contingência, ironia e solidariedade), exímios problematizadores da definição de “definição”. Afinal, se um símbolo é um objeto que se põe no lugar de outro, uma definição se presta ao papel de premissa de um ato de comunicação cuja o ápice performático é o da piada, da comédia. E deixar claras as premissas é uma postura muito mais importante quanto a universalidade do conceito de religião proposto do que a definição ela mesma. Até porque o religioso e o simbólico coincidem nos termos da hermenêutica de Geertz, e Asad sabe disso. A esta altura, ainda que motivações estejam fora da alçada do presente comentário, é mais importante descobrir o que Asad que de Geertz mais do que o que Geertz de fato produziu. E o que Asad demanda é disciplina.

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Who am I, Jackie Chan? III - o cômico em comum e o liberal engraçadinho

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3-

            However, to those who have been taught to regard essentialism as the gravest of intellectual sins it is necessary to explain that certain things are essential to that project – as indeed there are to “India” as a nation-state. To say this is not equivalent to say that the project (or “India”)  can never be changed; it is to say that each historical phenomenon is determined by the way it is constituted, that some of its constitutive elements are essential to its historical identity and some are not. It is like saying that the constitutive rules of a game can never be subverted or changed; it is merely to point what determines its essential historical identity, to imply that certain changes (though not others) will mean that the game is no longer the same game.”(Asad, 1993:18).

            West and the rest. É esta a clivagem para a qual Asad mais se dedica na contenda com Geertz. É o ponto e que concentra sua agressão exatamente por ser esta a fronteira criada pelo exercício da modernidade vindo a exprimir termos particulares desta relação, em particular como se constituem os modernos o resto do mundo como o exercício de seu negativo; os limites da extensão da contemporaneidade e o atraso evolutivo atualizado nas formas mais variadas; o privilégio do tempo futuro da gramática expressiva da noção de progresso. Ainda que completamente envolvida com a cisão os temas da pesquisa antropológica moderna a obriga a se aproximar demasiadamente da relação e seus protagonistas, esta gente que não produz e que não tem nada a acrescentar ao projeto da modernidade. Carrega consigo o fardo da inutilidade política, filosófica, teórica porque, enfim, toma a estranha decisão algo epistemológica de andar com as pessoas erradas e, de alguma forma, participar do seu jogo.

            Seria este o exercício proposto por Geertz, o de estudar na aldeia?

            Lembrando uma querela que persiste para além dos anos 1980, os temos de Writing Culture e a predicação da cultura via George Marcus e James Clifford vale retomar um lembrete. Antes de mais nada, o antropólogo é um autor. A antropologia, por determinação da condição humana ou mesmo por inspiração na Ciência Nova, é um artifício e a cultura um complexo ficcional. Produzir as thick descriptions  defendidas por Clifford Geertz é, desde o começo a definição de uma agenda de pesquisa que Asad problematiza. A antropologia como um código semiótico que, à forma dos demais, constituem a base da orientação humana como uma coisa feita. É ficção. A teoria da ação parte de um sujeito emancipado que, em Geertz não vai além de uma pragmática engaiolada ou, segundo a sua remissão à obra de Max Weber, suspensa numa teia de significados que é, por fim, a cultura. Ora, se a agência implica na extensão do ato e sua posse, o que pode um sujeito que só faz ficção? Seguramente, não muito mais do que antropologia, o que é algo como uma redução ao cômico:

            Anthropologists have not always been aware as they might be of this fact: that although culture exists in the trading post, the will fort, or the sheep run, anthropology exists in the book, the article, the lecture, the museum display, or, sometimes nowadays, in the film. To become aware of it is to realize that the line between mode of representation and substantive content is an undrawable in cultural analysis as it is in painting; and the fact in turn seems to threaten the objective status of anthropological knowledge by suggesting that its source is not social reality but scholarly artifice.” (Geertz, 1973:16)

            A redução ao cômico é um aspecto menos idiota do que parece, ou é perfeitamente idiota num certo sentido, digo, no sentido certo. Abre alas para a agência de um fator decisivo do esforço etnográfico de um certo culturalismo que recusa a narcose estética oferecida pelo ópio dos grandes modelos teóricos do tipo “the world according to me”. Franz Boas, em 1887 publica um elogio à geografia em favor de sua atividade eminentemente descritiva. Recuperar aqui este elogio por via de um desvio analítico-pragmático à Gilbert Ryle faz com que, de certa forma Geertz se alinhe com uma determinada questão ética imposta ao etnógrafo. Refunda a relação com ela operando no regime em que a mesma determinação das cores que da ótica passa pelos olhos de quem vê constitui o espaço de definição em que a antropologia e a condução da reflexão é feita junto aos amigos inúteis em um ambiente artificial, dado que ficcional. O caso é que cultura meramente ficcional provoca um pequeno distúrbio acerca da noção de alteridade, especialmente quando os amigos inúteis afirmam na primeira pessoa do plural que “não somos agentes da história, nem mesmo da nossa e o que fazemos não é ficção” recusando, por exemplo, a simetria por vezes perversa, por vezes redentora entre antropologia e conhecimento local.

Who am I, Jackie Chan? - II. Sobre a história subalterna.

 
2-

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ASAD, Talal. Genealogies of religion: discipline and reasons of power in Christianity
and Islam. Johns Hopkins Press. Baltimore and London. 1993.
GEERTZ, Clifford. The interpretation of cultures. Basic Books. Nova York.
1973.

            The essence of the principle of self-constitution is “consciousness”. That is, a metaphysical concept of consciousness is essential for explaining how the many fragments come to be construed as parts of single-identifying subjects. Yet if we set aside the Hegelian concept of consciousness (the theological principal starting from sense-certainty and culminating in Reason) and the Kantian concept of the transcendental subject, which Hegel rewrote as consciousness, it will have to be admitted that consciousness in the everyday psychological sense (awareness, intent, and the giving of meaning to experiences) is inadequate to account for agency. One does not have to subscribe to full-blown Freudianism to see that instinctive reaction, the docile body, and the unconscious work, in their different ways, more pervasively and continuously than consciousness does. This is part of the reason why agent’s act is more (and less) than her consciousness of it.”(Asad, 1993, 15)

            Que seja difícil acompanhar o debate a respeito das ações, especialmente porque com relação ao mesmo se impõe a pauta da responsabilidade, isto é, a partir de quando o ato efetivamente pertence exclusivamente àquele que o inicia? Quem pergunta é Jacques Ellul elegera como fundamental acerca da carência de responsabilidade em um sistema propriamente téchnicien – e, talvez, repetindo Hans Jonas -, o ato consciente e de posse do autor como moto contínuo da história não seja suficiente para compatibilizar os efeitos com as forças do movimento. Não necessariamente “a estrutura das ações possíveis que são incluídas e excluídas são, portanto independentes da consciência dos atores” (op.cit.:15-16). Ser agente da própria história pode não ser necessariamente o que está em questão. Sujeito e agente não estão implicados um no outro, não são planos necessariamente coincidentes. Qualquer sugestão relativa ao grau de implicação deve, antes de mais nada, conseguir identificar o que é que está em jogo.
            A retórica dos modelos de antropologia que Asad questiona, e que culminam no ataque a Clifford Geertz está diretamente relacionado ao tema da modernização dos sentidos que não parece atentar para a estrutura de duplo vínculo. Dito de outra forma, da modernização da Índia, por exemplo, pouco espaço há para imaginar sobre a indianização da modernidade ou mesmo uma leitura que reflita sobre a indiferença possível com relação ao seu advento – o que não implica em negar o advento, mas permitir que alguém lhe seja indiferente. Atento a este tipo de desdobramento que tantos outros esforços de imaginação se fazem, como a conversão indígena feita por jesuítas nas Américas segundo Michel de Certeau, que pergunta: convertidos em quê? Coisa que ele, jesuíta, nunca soube responder. É o mesmo tipo de disjunção potencial expressa na biografia de Victor Turner, convertido do comunismo ao catolicismo  pelos ndembu, valendo lembrar que até os anos 1970 não eram sequer vagamente cristãos – povo bantu. Converter sem saber no quê; converter sem querer; conversão à forma da diversão que abre espaço para uma história subalterna, termo que produz arrepios na sensibilidade protagonista do exercício autoral.
            Uma história subalterna ainda que não como regra, mas como um outro modo à parte do epicentro narrativo da história moderna que sugestivamente conta com o debate de Said acerca do orientalismo como uma de suas frentes. Isto se dá simplesmente porque a história a ser contada não necessariamente pode ser contada por si mesmo, ou que o narrador seja sequer uma personagem relevante, salvo se por redução sociológica. Seguramente que isto pode produzir  efeitos indesejáveis de interpretação mas, até o presente momento esta parece ser uma consequência inevitável. Mas no conflito das interpretações e na tensão entre as formas de justificação que não produzem acordo (ou contrato social), o que encontramos nas reflexões de Asad é exatamente o ponto de desacordo onde a história diverge exatamente como história por não contar com o mesmo enredo, gramática, personagens, predicação, autores, trama e fábula; vindo a produzir diferenças cujo encontro forçado como fora o colonial assume dimensões trágicas ainda que na apreensão na forma da crônica pareça assumir-se cômica. É como naquilo que é a guerra em que cada Cruzada conta com seu exército de Brancaleone que é importante compreender a medida das diferenças, isto é, como elas se medem a partir das imposições do contato e das requisições produzidas pelas diferenças entre si definindo o horizonte limite da relação e, também, da convergência narrativa.