Um ano atrás. Ri como com a mesma força com que tive que
conter a graça. Um seminário qualquer como os que ocupam a agenda de qualquer
pós-graduação, povoada de reuniões e meias-decisões recheadas de vento, feito
pastel de histórias infanto-juvenis. Entra no recinto John Monteiro. O
que dizer? Lento. Lento, mesmo. Cuidadoso, é verdade, mas lento. Os passos
dados à forma de escolher não somente as palavras, mas também a flexão adequada
de cada fonema, o que é a forma de falar de um estrangeiro cuidadoso. Entrou no
auditório nos mesmos passos de estrangeiro cuidadoso, devagar e, sobretudo,
sorridente ao primeiro contato visual. E ao segundo. Ao terceiro, pessoa a
pessoa. No quarto, e este era eu, sorriso dado com a flexão correta, sorriso
que não se desfez por inteiro até que viesse, logo mais, a digitar sua primeira
nota em seu computador de colo, quando outra flexão, lenta, se dá no rosto
produzindo a forma inversa do sorriso, uma lua minguante de quem decifrava o
que o palestrante disse, dizia ou viria a dizer. Quando havia passado por mim,
passou também por uma amiga. Ela, mais antiga do que eu na Unicamp ainda não
conhecia a figura de John por inteiro. Nunca o tinha visto. Vi que acompanhou a
figura larga e alta do professor americano com a mesma lentidão com a qual ele
mesmo descia a rampa que corta o auditório ao meio. Ao pé do ouvido, o assombro
em tom de chiste: “Nossa! Um raio atingiu esse homem?”. Ri a sair leite pelo
nariz, ainda que só pudesse fazer silêncio. Silêncio que se repete hoje, já sem
graça, por saber que não. Não foi um raio, mas um carro.
O mal começo de uma homenagem que não sei fazer continua na
forma das brincadeiras que a lentidão de John figurava nas conversas mais
irresponsáveis. A forma de coçar a cabeça com a palma da mão voltada para baixo
pousada suavemente no topo do crânio com os dedos apontando a testa é,
seguramente, aquilo que mais ouvi repetição. Irresponsáveis é quando podemos
agir desta forma. A lentidão de John nos servia da caricatura na sua variedade
de formas e manutenção do ritmo, o estrangeiro cuidadoso. Talvez eu pudesse
listar uma quantidade de piadas ouvidas ou inventadas para estas notas ao ponto
de reduzi-las a um anexo de pesquisa. Mas para fazer tal lista, precisaria inventar
quase todos os outros casos.
O curioso é que a malícia de tecer comentários desabonadores
nunca teve muito sucesso com a figura de John. O veneno que destilamos
diariamente no hábito de fazer fofocas e destruir a imagem alheia com o que
lhes é, e nos é pior, parecia ter lhe afetado somente de forma colateral. A
lentidão peculiar de gestos variados, por exemplo, ao invés da cegueira que
atinge a tantos golpeados pela potência ofídica, pode ser encarada desta forma. Na
integridade simples e no trato horizontal, John Monteiro tinha construído sua
imunidade ao nosso veneno anti-monotonia adquirindo talvez uma única marca deixada por uma
substância ruim, transformando-se em um passante que caminha lentamente. O caso é que John é, para
além da caricatura, um estrangeiro cuidadoso que, para além da relação com o país o qual abraçou como
historiador, professor e um perfect speaker da língua portuguesa, estava atento a ritmos um pouco mais sutis. Caminhava escolhendo
a flexão de cada sílaba, lenta e cuidadosamente porque há de se fazê-lo da mesma forma que falar baixo é uma tática de se fazer ouvir. Devagar também é uma velocidade. O choque então está em saber
que tenha partido tão rapidamente numa colisão provocada por um nativo descuidado deixando claro que perdemos alguma passagem de uma narrativa que acelerou sem nos darmos conta.
O falecimento de John Manuel Monteiro. Esta foi a razão de
Raúl Contreras me escrever ainda hoje, tão cedo, razão pela qual escrevo mesmo
sem ter propriedade alguma em fazê-lo. De tantos tão próximos, de tanto tempo
juntos, eu confesso ter chegado no que parecia ser o meio da história e, coisas
da vida, já estavam quase no fim da festa. Mesmo que longe de ter contraído
maior intimidade, me sinto obrigado a manifestar eu ter sentido sua morte com o
peso e as lágrimas que esse tipo de vento traz. Não sei definir com clareza
como seria isto, e nem por quê. Mas, assim
como John, Raúl é alguém que conheço desde antes de tê-lo visto de fato, dado
que sua figura já estava distribuída na trama dos amigos em comum que temos. E,
de alguma forma via entre John e Raúl um ar de família, digo, uma parecença, uma
coisa delicada que tem o odor da cautela, e que entendo como um certo carinho
no trato, uma paciência na lida que vim a saber, pode ser um traço da Linhagem,
os alunos que John nos legou, tantos deles amigos de momentos tão difíceis e
caros. Legado raro.
Se via Raúl pelos olhos alheios de um amigo em comum,
igualmente um sincero admirador de John como professor, o mesmo se deu com o
mesmo John que me foi apresentado alguns anos antes de finalmente apertarmos as
mãos, por via de seu livro Negros da
Terra que li quando ainda livreiro e esquecido de me dedicar à pesquisa em
antropologia. Mais adiante, conduzido por meu orientador Ronaldo Almeida nos
demos as mãos, no que John estendeu a sua, lenta, mas firmemente. E é aqui que
as brincadeiras sempre acabam. Não porque as deixamos de fazer, mas porque elas
perdem força, não conseguem seguir adiante. O aperto de mão, firme. O olhar,
direto. A conversa, franca, doce. Lenta como deve ser, de assuntos outros, de
paisagem euro-americana, de modernistas e seus intelectuais destacáveis
conforme a preferência da casa. E de supetão, já não tenho mais com quem
conversar sobre as aventuras de William James na floresta amazônica, tema que lhe serviu de mote para me presentear com um livro organizado por sua esposa, Maria Helena Machado, e
traduzido por ele mesmo, com vistas numa conversa futura. Não deu. Fomos
brutalmente interrompidos. E ainda assim, mesmo tendo sobrado à mesa com a
conversa cortada sei que, no final das contas o privilégio foi meu, ainda que
por tão pouco tempo. Mas saber disso é saber muito pouco.