quinta-feira, 14 de agosto de 2014

O meio de transporte: sobre a doutrina do similar e outros segredos.

KAFKA, Franz. Um médico rural. Brasiliense. São Paulo. 1993. (trad. Modesto Carone)
TAUSSIG, Michael. Mimesis and alterity: a particular history of the senses. Routledge. Nova York. 1993.



2- Esta forma de indistinção relativa e parcial serve de motor para uma longa exposição daquilo que Frazer chama de arte da mágica, a mesma exposição que vem a servir como documento de base para o Esboço de uma teoria da magia de Mauss e Hubert. Um meio que permite com que civilização e selvageria sejam postos num plano de indistinção e cujas ruínas permitem que o antropólogo possa se transportar até esta mesma zona de indistinção relativa serve como ambiente privilegiado da teoria da mimesis de Michael Taussig (1993) que não obstante ser uma história particular dos sentidos, e não uma história geral, parte da premissa de que esta mesma história é antes de tudo atrelado às formas de corporificação – de presença, o meio de relação.
As histórias que Taussig narra, e no final de contas se trata de uma colagem algo dadá de narrativas em que o tema da semelhança toma forma replicando de alguma forma o método de retirar do contexto e fazer valer a relação por algum meio em que seja possível fazer viger a semelhança. É uma arte da magia que, contudo, trata Frazer como remanescente de outra coisa cujas ruínas, na verdade traços no papel, permitem outra forma de aceder ao selvagem, tão ambíguo quanto o sacerdócio praticado em Nemi. Selvageria delicada de uma história particular que não cessa de produzir transportes entre o selvagem e o civilizado que, numa variação da história natural humana faz da animalidade uma forma de narrá-la. Afinal, selvagem mesmo que vitoriano, humano. O chimpanzé de Um relatório à academia, de Franz Kafka é talvez o símbolo perfeito para este outro passo rumo a uma teoria da magia que não abre mão da história natural, ainda que seja de um tipo particular – em primeira pessoa, o chimpanzé já não é mais macaco mas ainda se lembra que, de alguma forma, o foi. O macaco se foi para que pudesse, todavia, ser lembrado nessa variação individuada da seleção natural em que o que resta como memória é, sugestivamente, o tendão de Aquiles.

Falando francamente – por mais que eu goste de escolher imagens para estas coisas – falando francamente, sua origem de macaco, meus senhores, até onde tenham atrás de si algo dessa natureza, não pode estar tão distante dos senhores como a minha está diante de mim. Mas ela faz cócegas no calcanhar de qualquer um que caminhe sobre a terra – do pequeno chimpanzé ao grande Aquiles.” (Kafka, 1991:58)

Esta não é uma história natural avant la lettre. E como epígrafe que é para Mimesis and alterity, não é exatamente o bucolismo de Virgílio. Contudo, parece nos transportar para o mesmo lugar, caso consideremos que lugar aqui não é meramente paisagem. É um meio.

O meio de transporte: sobre a doutrina do similar e outros segredos.


FRAZER, James George. The golden bough: the magic art (2/13 vol.). Macmillan.1990 [1913].
 
DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem sobrevivente: história da arte e tempo dos fantasmas segundo Aby Warburg. Contraponto/Museu de Arte do Rio. Rio de Janeiro. 2013


The Golden Bough, J. M. W. Turner, 1834.
1- Talvez eu esteja fazendo arranjos que tirem as coisas do contexto e, mesmo, não estou seguro de que o contexto vá garantir alguma coisa que não seja uma autoridade que o contexto não teria e, ainda assim, transferiria para aquilo que apresento como material de leitura. Por vezes parece ser necessário ser somente uma alusão ao entorno e seus elementos constitutivos determinantes, o tipo de tirania que a noção de causa aplica às disciplinas históricas. Não que a causa não exista, não que não faça sentido, mas porque provoca um excesso de sentido quando o que se busca é simplesmente apresentar um acontecimento. E quanto a isso, o contexto diz muito pouco, ainda que permita com que as hipóteses de uma determinada pesquisa não sejam generalizadas. Aliás, generalizar é tirar de contexto. Traçar analogias, igualmente. Tirar do contexto demanda, obviamente, algum tipo de transporte que, em outra época era outro nome para metáfora. Metáfora é uma forma de tirar de contexto que, para tal, se mobiliza por saltos de semelhança. E este é, de certa forma o expediente da magia e, ao mesmo tempo, da antropologia de James George Frazer. Metodologia e objeto se confundem no Ramo de Ouro, na proliferação selvagem de receitas de magia cuja fonte cobre toda bibliografia possível buscando compreender, em seus primeiros dois volumes, um evento particular: as regras de sucessão de sacerdócio no templo de Diana em Nemi.
Frazer retoma a relação própria de tantos historiadores modernos que, desde Volney vêem nas ruínas uma imagem do passado fazendo da sobrevivência das formas, rotas, uma espécie de sobrevivência – quando não uma espécie sobrevivente (Didi-Huberman, 2013).  Nemi, portanto, parece ter mantido, em algum sentido, a imagem do que a Itália fora nos dias de outrora quando a terra era habitada de forma esparsa, povoada com tribos de caçadores selvagens e pastores meditabundos (Frazer, 1990:08) que permitem induzir serem traços caracteristicamente italianos. O quadro de J. M. W. Turner homônimo ao livro serve como paisagem que permite reconstituir a cena da Itália ancestral, o mesmo Turner que sentia-se aliviado por ter vivido sua arte antes do advento e popularização da fotografia. Turner, à sua forma, era testemunha de um Itália ancestral que não era sua, nem por nacionalidade e tampouco por qualquer testemunho em primeiro grau. A sua Itália pagã é fruto das ruínas, as mesmas de Frazer que, em linhas gerais, a reconstitui por traços. Há muito tempo passado, há um intervalo gigantesco entre os dois momentos – sugerindo, obviamente, que haja algo que possa ser chamado de Itália no tempo de Ovídio que não seja, de alguma forma, um fantasma.
Este fantasma  verdeja em loureiros, oliveiras e cipreste; limoeiros e laranjais que compõe a cena bucólica tão apropriada para uma cena retirada de versos como os de Lucano, Ovídio e Virgílio – para citar somente aqueles vertidos para a língua portuguesa.

However, it was not merely in its natural surroundings that this ancient shrine of the sylvan goddess continued to be a type or miniature of the past. Down to the decline of Rome a custom was observed there which seems to transport us at once from civilisation to savagery. In the sacred grove there grew a certain tree round which at any time of the day, and probably far into the night, a grim figure might be seen to prowl. In his hand he carried a drawn sword, and he kept peering warily about him as if at every instant he expected to be set upon by an enemy. He was a priest and a murderer; and the man for whom he looked was sooner or later to murder him and hold the priesthood in his stead. Such was the rule of the sanctuary. A candidate for the priesthood could only succeed to office by slaying the priest, and having slain him, he retained office till he was himself slain by a stronger or a craftier.” (Frazer, op.cit.:09)

Vemos que a temática do transporte está presente. E, como é próprio da imaginação vitoriana, o transporte nos leva para a selvageria e num movimento quase que imperceptível colige civilização e selvageria na mesma cena. A mesma Itália antiga que buscamos no templo de Diana em Nemi, cheia de bucolismo e beleza, é a que oferece esta forma de alternância selvagem de poder no exercício do sacerdócio da mesma Diana. O mais forte ou hábil deve perseverar numa variação quase que darwinista do sacer ocium; selvageria e sacerdócio em um meio que borra sua distinção. E no entanto, neste mesmo jogo, é quem sobrevive aquele que exerce sua função e leva adiante as regras de sucessão só para que venha a ser assassinado logo mais. Caso não morra, morre a tradição com ele.

sábado, 21 de junho de 2014

O som e a fúria

Símbolo pátrio é de uma tal liturgia
que no momento do hino
só encontra par
- a força da antecipação -
no som do zíper se abrindo.

Inflamável, a trança da mãe - o discurso fúnebre de Herta Müller


MÜLLER, Herta. O discurso fúnebre in Depressões. Globo. Rio de Janeiro. 2010. trad. Ingrid Ani Assmann.

Eu não leio em alemão. E o que leio, soa a Naturwissenschaftslehre, inadequado para ritmo curto das frases testemunhais da prosa literária. Ainda assim, abri o livro. Era para ser uma coisa rápida. E foi. 

Não tive outra impressão senão que se tratava de uma ruiva. E que tudo não seria um grande pesadelo. Mas o Nobel ruiu quando, na última frase vertida para o português, li que o despertador tocou, que era sábado de manhã, cinco e meia. A última frase deveria ser sou ruiva e são cinco e meia da manhã

O sangue escorrido nos ombros na paisagem sórdida da guerra que emoldura o horror do velório, do discurso fúnebre que o conto todavia é, conduzido afinal pelas trança incendiadas da mãe vestida num preto transparente de certo erotismo mortuário. Este conto deveria ser Disgrace, deveria ser um romance, deveria se dar na África do Sul. Era algo enorme e, no entanto, interrompido à moda de um filme ruim, pelo despertador, às cinco da manhã. É só um conto que acaba rápido num tiro de fuzil metafórico.

Ruínas duram muito tempo em um mundo arruinado.

Mais respeito da próxima vez.

terça-feira, 6 de maio de 2014

Notas desde atrás do muro: os espaços da fé e território como problema de teologia política.

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CERTEAU, Michel de. La Fable Mystique, I: XVIe-XVIIe siècle.  Gallimard. Paris. 1982.
________________________. Le lieu de l’autre : histoire religieuse et mystique. Gallimard/Seuil. Paris. 2005.
________________________. La Fable Mystique, II : XVIe-XVIIe siècle. Gallimard. Paris. 2013.
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DUBY, Georges. As três ordens ou o imaginário do feudalismo. Edições 70. Lisboa.1982.
KANTOROWIKZ, Ernst Hartwig. The King’s to bodies: a study in mediaeval political theology. Princeton. Princeton. 1997.


8-
            Nos escritos de Michel de Certeau podemos encontrar três momentos privilegiados onde o conceito de mística são devidamente discutidos e apreciados. Em primeiro lugar, e mais obviamente, nos dois volumes publicados de La Fable Mystique – há previsão para a edição de um terceiro volume, igualmente organizado por Luce Giard. O terceiro momento, em verdade publicado entre as publicações do primeiro (1982)  e segundo volumes de Fable Mystique (2013, póstumo) é Le lieu de l’autre – histoire religieuse et mystique (2009). O que pretendo fazer daqui por diante é retomar mais detidamente o problema posto pelo historiador jesuíta quanto a definição paulatina da mística como ciência e discurso – um e outro extensíveis ao problema da administração da vida alheia, isto é, referendáveis a alguns problemas modernos da arte de governar. Resta saber, contudo, se o caminho de volta é possível e se o que volta de lá é, de fato, a lei.
            Na passagem em que Michel de Certeau introduz o tema do erotismo do Corpo-Deus na introdução do primeiro volume de La Fable Mystique, vemos a menção a um tema muito caro a uma certa etnologia americanista de orientação clastriana: a questão do Um. Acabara de falar sobre a quadratura a partir da qual a mística seria abordada (a partir de uma nova erótica; de uma teoria psicanalítica; de uma historiografia; a partir da fábula, a remetendo ao problema da oralidade e da ficção).  E é justamente a partir da dimensão erótica que a questão do Um irrompe como problema, isto é, de Deus como Único objeto de amor.

            Malgrado todas as invenções e conquistas que este Ocidente do Único (a queda do antigo Sol do universo instaurou o Ocidente moderno), malgrado a multiplicação das artes permitindo que se jogasse com presenças em vias de desaparição, malgrado a substituição do que Falta por uma série indefinida de produções em série, o fantasma do único sempre dá as caras. Mesmo as possessões se articulam sobre qualquer coisa de perdido. É assim que don Juan, perseguindo suas conquistas com desenvoltura, mille e tre, sabe que as mesmas repetem a ausência da única e inacessível “mulher”.”(1982:13)

            O que desponta como diagnóstico é a sintetização do desejo no objeto desejado como unidade, isto é, a despeito da variedade disposta em séries demonstrativas que começa a definir aquilo que é a aventura moderna do discurso, a manifestação do desejo retorna ao único amor, ao desejo a ser desejado acima de todos os desejos. Deus ou, no caso de don Juan, A Mulher, a mesma que aparecerá mais adiante como encarnação do popular em La Sorcière de Jules Michelet. Em alguns momentos Michel de Certeau é agressivo na adesão da tese de que a modernidade é um período cuja tecnicização impacta rapidamente o universo religioso e que, ao mesmo tempo, este é o momento em que aquilo que virá a ser chamado de ciência moderna – nem tão científica assim, ainda que profundamente moderna – reconstitui os espaços da vida religiosa na forma da racionalização. O redimensionamento, vale dizer, não é feito necessariamente fora do seio da Igreja Católica. Na verdade, em grande parte é exatamente o contrário. Difícil não considerar o papel do cardeal Richelieu no que poderíamos chamar de modernização da França quando estamos, no limite, falando da invenção da França tal como a conhecemos. Desde a construção da primeira cidade planejada da história, exatamente Richelieu, vizinha de Loudun, até o papel como condutor do novo universo científico trazendo para perto de si figuras como Fontenelle e Renaudot. Qual seria o tamanho do abuso da razão ao colocar a França, esta gestada no alvorecer da modernidade, como manifestação do erotismo em que passando os olhos, de francês em francês o que se busca é, inutilmente ainda que com alguma eficácia, a “França”, a “Mulher”, “Deus”?
            Este que é claramente um fantoche, uma provocação a partir da erótica tem desdobramentos mais graves quando consideradas à luz da teologia política, isto é, a consideração de que o exercício do discurso teológico traz no seu seio um tipo de manifestação característica da vida política: a declaração da inimizade, ou seja, de guerra (Taubes, 1999). Ao considerar a relação entre desejo e mística por via do erotismo, Michel de Certeau cumpre o itinerário da encarnação do verbo cuja remissão à eucaristia vê narrada na mesma modernidade clássica sua redução ao simbolismo da transubstanciação.

            A palavra, escrita mas indecifrável,  é deixada fora desse corpo para o qual um discurso erótico se põe não obstante em busca de palavras e imagens. Ainda que a eucaristia (lugar central deste deslocamento) fizera do corpo uma efetuação da palavra, o corpo místico deixa de ser transparente aos sentidos vindo a se opacificar deixando a cena muda própria de um “je ne sais quoi” que o altera, um país perdido igualmente estrangeiro aos sujeitos falantes e aos textos de uma verdade.” (1982:15)

            Não é sem consequências que a sugestão do deslocamento do corpo se dá. Não sendo somente o local em que o corpo se faz presente – não somente o do fiel, mas aquele de Jesus Cristo -, a comunidade eucarística que se desdobra do corpus  mysticum fundamenta a analogia que faz operar a política medieval destituída pela nova ordem monárquica.

            O conceito de Igreja como corpus Christi remonta, obviamente, até São Paulo; mas o termo corpus mysticum não se ampara na tradição bíblica sendo bastante mais recente do que se poderia imaginar. Se tornou preeminente em primeiro lugar na era Carolíngia vindo a ganhar importância no curso da controvérsia sobre a Eucaristia conduzida por muitos anos por Paschasius Radpertus e Ratramnus, ambos do monastério de Corbie. Em uma das ocasiões, Ratramnus salienta que o corpo no qual Cristo sofrera fora o seu “mesmo e verdadeiro corpo” (proprium et verum corpus) enquanto o Eucarístico seria seu corpus mysticum. Talvez Ratramnus pousasse sua autoridade em Hrabanus Maurus, quem dissera certa vez, pouco tempo antes, que dentro da Igreja o corpus mysticum – significando a Eucaristia – era administrado pelo ofício sacerdotal.” (Kantorowikz, 1997:196)

            A administração da liturgia, indica o trabalho de Ernst Kantorowikz, se desdobra em uma metáfora originária em que a comunidade dos ofícios da cristandade será posta sob o signo do conceito de Eucaristia – o que é, em grande parte e guardadas as desproporções, a tese original da antropologia social vitoriana, em especial nos trabalhos de James Georger Frazer, William Robertson Smith e, mais adiante, Anthony Maurice Hocart. De corpo místico à corporação mística em que a Eucaristia se traveste em formas jurídicas, dado ser este o ambiente em que a ordem tripartite do Estado feudal guarda para o exercício do clericato (Duby, 1982). Que não se considere a sugestão de que o desdobramento do corpus mysticum se origina de uma metáfora seja um exagero. E aqui me permito citar um parágrafo ainda mais extenso, do mesmo Kantorowikz, com a finalidade de orientarmos melhor o desenho ascendente a que se presta  a ordem estatal e sua primeira forma orgânica:

            Aquinas, to be sure, was still fully aware of the fact that the mystical body really belonged to the sacramental sphere, and that corpus mysticum was to be set over against the corpus verum represented by the consecrated host. Even he, however, spoke of both bodies – the true and the mystical – without reference to the Eucharistic bread. In his teaching, the “true body” repeatedly signified not all the Eucharistic Christ of the alter but Christ as an individual being, physical and in the flesh, whose individual “body natural” became sociologically the model of the supra-individual and collective mystical body of the Church: corpus Christi mysticuym… ad similitudinem corporis Christi very. In other words, the customary anthropomorphic image comparing the Church and its members with a, or any, human body was sided by a more specific comparision: the Church as a corpus mysticum compared with the individual body of Christ, his corpus verum or natural. Moreover, corpus verum gradually ceased to indicate solely the “real presence” of Christ in the Sacrament, nor did it retain a strictly sacramental meaning and function. The individual body natural of Christ was understood as an organism acquiring social and corporational functions: it served  with head and limbs, as the prototype and individuation of a super-individual collective, the Church as corpus mysticum.” (Kantorowikz, op.cit.:201).

            É do próprio Tomás de Aquino a fórmula corpus Ecclesia mysticum, desdobramento da analogia de corpus Christi mysticum que só faria sentido na administração dos sacramentos. Esta série que se desdobra da metáfora com o corpo de Cristo culmina na secularização a noção do corpo místico traduzindo o idioma litúrgico para o jurídico. Secularização aqui, no sentido estrito do termo, posto a serviço do século. Não é outra a fonte da abstração que correlaciona a pessoa mística com a pessoa fictícia (persona repraesentata/ficta; pessoa feita, isto é, em analogia com a noção de Pessoa). E não é outra pessoa senão a mística a que se desestabiliza como fonte de analogia na constituinte do poder monárquico. É para ela que aponta a erótica que serve como primeiro plano da quadratura da mística de Michel de Certeau. (1982, 15). O segundo elemento da quadratura aponta a direção na qual se dá a desestabilização: o universo psicossomático da psicanálise.

Notas desde atrás dos muros: os espaços da fé e território como problema de teologia política


CERTEAU, Michel. La Fable Mystique, I: XVIe-XVIIe siècle.  Gallimard. Paris. 1982a.
________________________. Le lieu de l’autre : histoire religieuse et mystique. Gallimard/Seuil. Paris. 2005.
DELEUZE,  Gilles & GUATTARI, Félix. Mille Plateaux : capitalisme et schizophrénie. 
Minuit. Paris. 1980.
KAFKA, Franz. Um médico rural – pequenas narrativas. Brasiliense. São Paulo. 1991.
JAY, Martin. Songs of experience: modern american and european variations on a universal theme. University of California. Los Angeles. 2006.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. EdUSP. São Paulo. 1993.
_____________________________. Investigações Filosóficas. Abril Cultural. São Paulo.1999.
 


7-
            Se no começo de tudo, há o dado (Certeau, 2009:335), é preciso talvez dar um passo atrás, antes de tudo. Em certa cronologia, antes da modernidade mostrar suas fronteiras, cujo verdadeiro vocábulo é a expansão. Não imagino, na verdade, que o termo virá a significar coisa diversa. Michel de Certeau disserta sobre o verbo que precipita da mística como ciência experimental, como algo a ser dito e que se remete a um il y a  ou a um il y a eu que antecede o que está para ser dito e mesmo com relação ao que foi dito, imergindo o verbo na emanação daquilo que há. O que há, contudo, não está disponível para além daquilo que, de uma forma ou de outra, fora dito. O que há é, de outra forma, aquilo que acontece e que, assim, em toda sua potencia não obedece a qualquer jurisdição imposta pelas Leis, linguagem ou afeição. Irrompe no movimento que deixa rastros sem deixar, contudo, evidências. Vira tudo um disse-me-disse cujo aspecto de fofoca insiste em submeter o verbo fantástico na suspeição usual – não se sabe quem foi, como foi, mas sim que aconteceu.

            Ninguém pode então dizer: “É a minha verdade” ou “Sou eu”. O acontecimento se impõe. Em um sentido muito real, ele aliena. Ele é a ordem do êxtase, isto é, o que expulsa, põe para fora. Exila de si (du moi) mais que nele reúne. Mas tem por característica abrir um espaço sem o qual o místico não pode então viver. Indissociável do consentimento que lhe serve de critério, um “nascimento” retira do homem uma verdade que é sua sem que seja dele ou para ele. Assim, é “fora dele” quando o momento quando se impõe um Si (Soi). Uma necessidade se eleva nele, mas sob o signo de uma música, de uma palavra ou de uma visão vinda d’alhures.”(Certeau, op.cit.332)

            Não é o que é dito, mas uma forma de dizer. E ainda assim, a mística é submetida a uma disciplina pela qual ela pode vir a público. O signo da música, o componente da partitura, e significativo e presente em outros esforços do mesmo Michel de Certeau em apresentar o que poderia ser a escritura mística. Esta é a analogia posta em jogo quando remetida ao libreto dos exercícios espirituais de Ignacio de Loyola. Que o mesmo se trata de uma coordenação de um “fora do texto” e que não prima pela substituição da voz, ao contrário. Mais do que parecer implica-la, a provoca.

            Não é mais a narrativa de um itinerário do que um tratado de espiritualidade. Os Exercícios fornecem somente um conjunto de regras e práticas relativas às experiências que não são descritas nem justificadas, que não são introduzidas no texto, e que não são representação de forma alguma dado que postas como exteriores à ele sob a forma do diálogo oral entre o instrutor e o interno, ou da história silenciosa das relações entre Deus e seus dois internos.” (2009:239)

            Que seja perdoada a remissão a algo tão distante do universo barroco e do exercício de autoridade que prima pelo controle de si tanto quanto pela generalização metódica de um si civilizado (sivilizado). Mas há algo no ambiente da disciplina da mística que impede que prossigamos pelo simples fato de haver interdição da fala com relação ao seu objeto. O mero haver do qual se parte, “algo aconteceu”, não floresce de uma investigação filogenética. Sua domesticação, portanto, segue interdita ou traduzida, como insiste Michel de Certeau com alguma razão, em psicossomática ou, no universo presidido pela lógica do concreto de Lévi-Strauss, na eficácia simbólica. No primeiro, não importa de acontece fora; no segundo, seguramente algo acontece dentro. E de quê senão da relação constituinte? Psicanaliticamente a existência do objeto é presidida pela relação do paciente com a produção de símbolos precipitada, principalmente, de relações traumáticas cuja cisão produzida demanda da psique um esforço compensatório de produção de imagens, sentido e memória. No caso do estruturalismo simbólico é a relação do símbolo como realidade do espírito, e não como representação da realidade que a eficácia opera, dado que o organicismo do estrutural funcionalismo assume um outro ar em que a autonomia do simbólico se dá na quebra do espelhamento da estrutura da ordem dos símbolos com a estrutura social. O símbolo afeta de fato, ainda que não necessariamente de direito.
            E segue havendo nisso tudo a proliferação de pontos cegos recorrendo ao aporte do extraordinário da linguagem. O trauma, o mito, o au-de-là católico dos jesuítas e seu Deus absolutamente estrangeiro. Parece recorrer a uma fórmula muito divulgada, de Ludwig Wittgenstein e seu Tractatus Logico-Philosophicus: “Wovon man nicht sprechen kann, darüber muß man schweigen [Sobre aquilo que não se pode falar, deve-se calar]. Parte deste tratado de Wittgenstein diz respeito à relação com o mundo, ainda que não necessariamente se saiba a relação de quem. Possivelmente a do leitor que compreende que Deus se revela no mundo, o que o faz indiferente quanto a como seja o mundo, assim que o modo que o mundo por ventura seja não é o místico, mas sim o mero fato de que haja mundo. A dimensão da atemporalidade do eterno se conjuga com a ausência de fim e finalidade da vida e a inefabilidade do mundo como tal. Isso é o Místico (6.522).
            A proposição 6.53 do filósofo austríaco é decisiva dado que sintetiza o tipo de observação que Michel de Certeau considera decisiva para uma de suas várias aproximações diretas com o conceito de mística. O apartamento entre evento e discurso e o modo de sua recuperação arruinada pela própria ordem do evento que impõe a mística como uma disciplina desemboca em formulações como a seguinte:

            O método correto da filosofia seria propriamente este: nada dizer, senão o que se pode dizer; portanto, proposições da ciência natural – portanto, algo que nada tem a ver com a filosofia; e então, sempre que alguém pretendesse dizer algo de metafísico, mostrar-lhe que não conferiu significado a certos sinais em suas proposições. Esse método seria, para ele, insatisfatório – não teria a sensação que lhe estivéssemos ensinando filosofia; mas esse seria o único rigorosamente correto.” (1993:281)
           
            Um gosto amargo parece atravessar a boca a cada vez que uma sentença ordinária é proferida. Dito de outro modo, não há nada a dizer especialmente quando há um dado porque é este mesmo dado o inefável. E o dado se amplia como forma intangível uma vez que a experiência se transforma, igualmente em algo que acontece, em algo que aconteceu, com o que se tenta entabular relação. Contudo o pretérito perfeito tende a se arruinar também se transformando em vestígios do mundo e, por isso, segue perdido. Não é por acaso que Michel de Certeau evoca o conto de Franz Kafka, Diante da Lei. “Diante da Lei está um porteiro” que se impõe diante de um homem do campo que deseja entrar. Ele sugere desobedecer a interdição com relação à qual o porteiro não levanta objeções, mas tece o aviso de ser o mais poderoso de todos os porteiros. O homem do campo, que achava ser a lei acessível espera encontrar uma solução para o empasse por anos, sentado em um banquinho oferecido pelo porteiro. Dentre conversas e tentativas de corrupção, o porteiro aceita de tudo com o intuito de oferecer para o homem do campo a sensação de ter feito de tudo que estivesse em seu poder. Não mais diante da Lei, mas da velhice e da morte o homem pergunta ao porteiro “Todos aspiram à lei.[...] Como se explica que em tantos anos ninguém além de mim pediu para entrar?”. Percebendo ser o último suspiro do homem o porteiro diz que ali somente ele, o homem do campo, poderia ser admitido. Uma vez que estava morto, levantou-se e fechou a porta (Kafka, 1991:23-25).
            A lei é, aqui, um terreno estrangeiro, o lugar do outro. Este é, pelo menos, o aporte de Michel de Certeau que parece compactuar com Wittgenstein ao menos para fins historiográficos. Esta relação com o totalmente outro, e com a experiência como a fuga de si parece corroborar o artifício moderno de controle da imaginação como forma de edição da mística; ou da mística como conteúdo que viola o acordo tácito de pacificação do discurso, de homens do campo que não reconhecem portas e tampouco porteiros. É neste sentido que o mundo é absurdo, dado que ele seria o puro ambiente do acontecimento. Mas até onde a obediência a uma restrição de tipo não entre serve de fato para uma investigação a respeito da mística como entrada interdita no território estrangeiro (inimigo?)?
            Ao comentar o pan-misticismo de René Daumal, aquele que reduz todas as místicas à Mística, Michel de Certeau pergunta se não seria por fim o próprio Daumal o único denominador comum da Mística sintetizadora da diversidade dos misticismos. Com relação à mística de Wittgenstein, se há um leitor que escapou da tentação redutora foi ele mesmo. O diálogo de Kafka, por exemplo, estar diante da lei não seria nada de excepcional. Tampouco a mística ofereceria uma sorte de orientação que não fosse, ademais, ordinária. Em um primeiro momento, no que diz respeito à sugestão, tomada pelo homem do campo como um imperativo de tipo Não Entre opera como um jogo tácito em que a porta fechada disse mais coisas do que de fato o teria dito o porteiro. E no entanto, nada foi dito. Mas para além da pragmática da comunicação para onde Wittgenstein dedica todos os seus esforços em suas Investigações, o exato oposto do Tractatus, há também uma ampliação do escopo da comunicabilidade do sentido. Dito de outra forma, absolutamente tudo pode ser dito a qualquer hora, da forma que seja. Isso em nada tem a ver com a comunicação do sentido (meinen).
            Sendo que §249 mentir é um jogo de linguagem que deve ser aprendido como qualquer outro e que as regras postas na forma de lei são jogos de linguagens acerca de jogos de linguagem o que há, o que acontece, é uma constante proliferação de símbolos, sentidos e ordens que tem como fundamento, não o sentido ele mesmo mas seu caráter imperativo – o que é demonstrado com muito vagar e propriedade por Austin (1975). A base não é o significado de um significante, mas aquilo que eu disser que é de Humpty Dumpty e suas variações mais marcantes, como as traduções como a de Deus-Tupã feita pelos jesuítas ou mesmo a mais reles maçã. E a reles maçã, não no que tenha como qualidade de ser maçã, mas na sua condição de reles que uma outra dimensão do binômio dentro/fora assume outro caráter. Porque se há algo que interfere na comunicabilidade do isso da mística, do dado, é exatamente a ausência de uma referencia possível, dado que inefável. Vejamos o aforisma 244 das Investigações:

            Como as palavras se referem a sensações? Nisto não parece haver nenhum problema; pois não falamos diariamente de sensações e não as denominamos? Mas como é a mesma que: como um homem aprende o significado dos nomes de sensações? Por exemplo, da palavra “dor”. Esta é uma possibilidade: palavras são ligadas à expressão originária e natural da sensação, e colocadas no lugar dela. Uma criança se machucou e grita; então os adultos falam com ela e lhe ensinam exclamações e, posteriormente, frases. Ensinam a criança um novo comportamento perante a dor.
            “Assim, pois, você diz que a palavra ‘dor ’significa, na verdade, o gritar?”- Ao contrário; a expressão verbal da dor substitui o gritar e não o descreve.” (1999:99)

Algo do inexpugnável no universo da mística está impregnado pelo odor do ordinário da experiência – ainda que não esteja tratando experiência como sinônimo de sensação.  Até porque, assim como Wittgenstein não é ele mesmo mas a variação sobre o tema da relação mundo/sentido, o termo experiência é também uma contraposição a si mesmo. Afinal, como já dito, não se trata de uma relação entre significante e significado mas aquilo que eu disser que é. E nisso não se infere qualquer autenticidade maior ao que acontece no âmago da sensação, independente se é ou não próprio à experiência mística. Se é dito, é um jogo de linguagem e sua referencia pertence a uma outra dimensão que a linguagem não opera ainda que possa indicar – sem fazer remissão ao objeto da experiência. É assim que reencontramos Michel de Certeau que, ao afirmar da linguagem social da mística aponta para a sociação que ativa elementos do discurso que façam da experiência mística algo distinto do ensandecido, louco ou infantil. Para a economia da mística, obviamente, dado que para um libertino todos estes qualificativos são, por fim, sinônimos. Mas não chegamos lá, ainda.
A nomenclatura, isto é, esta forma de fazer fazer[1] no entorno da experiência como conceito  – como mera palavra em disputa – apresenta uma face bipartida na sua versão alemã. Na verdade é na fortuna germânica que uma distinção analítica atinge a maturidade de um vocabulário específico em que é possível fazer remissão à experiência e, de outra forma, a consciência de experiência. Dentro e Fora são encenados por Erlebnis e Erfahrung:

Erlebnis contém em si o radical de vida (Leben) e por vezes é traduzido como “experiência vivida”. Todavia, sendo um verbo transitivo vindo a implicar a experiência de alguma coisa, Erlebnis é tomado também como a unidade primitiva anterior a qualquer diferenciação ou objetificação. Normalmente localizada no lugar comum das práticas não autorizadas do “mundo da vida” (Lebenswelt), pode também sugerir uma ruptura intensa e vital com a fabricação da rotina quotidiana. Leben também pode sugerir a inteireza da vida de forma que Erlebnis conota em geral algo mais imediato, uma variação pré-reflexiva e pessoal daquilo que Erfahrung poderia ser.” (Jay, 2006:11).

Por sua vez, Erfahrung é uma espécie de jornada perigosa (entabula conexões tanto com Fahrt= jornada; quanto Gefahr=perigo) em que a noção e experiência é articulada com a ação no tempo fazendo da mesma experiência algo diversa, um acúmulo memorável de conteúdo. Portanto, sendo grosseiramente sumário, a mística é o conteúdo da jornada perigosa, ruínas, o resto da gesta; místico é aquele que vive a vida enquanto não é, ele mesmo, o perigo. Este se transformou numa história em que é narrada uma variação do tema sobre a relação entre pureza e perigo.


[1] Vide Deleuze & Guattari (1980:95-139).

sexta-feira, 2 de maio de 2014

TODO MUNDO É CONSERVADOR, EXCETO QUEM NÃO É.

"Existem dois tipos de pessoas", e logo quero ser classificado naquela a ser violentada para encerrar o assunto. Mas isto é coisa minha, não de José Pereira Coutinho (link abaixo). A meu ver, a coisa dos outros é matéria de debate especialmente quando o outro sou eu. A divisão entre "revolucionários" e "reacionários" como tipificação válida, muito longe de qualquer tipo ideal, deixa de lado uma série de ações políticas centrais na condução da política dos Estados modernos conduzidos fundamentalmente pela indiferença e negligência que não se qualificam por nenhuma conduta ideologicamente orientada - cito somente a indiferença e a negligência para ficar somente com as mais absurdas, ainda que bastante usuais. Dito de outra forma, a divisão em dois pólos implica necessariamente numa formulação que faz da série de analogias que compõe os tais tipos ideais numa forma de identidade por via da qual seja possível condenar quem quer que seja a ser aquilo que ela obviamente não é. Dizer que existem dois tipos de pessoas é, na melhor das hipóteses, retórica vazia. É exatamente contra esse tipo de equívoco lógico que a sociologia alemã se levantou, em especial contra o positivismo de Émile Durkheim que conferia a grupos e sociedades identidade por via de séries analógicas sem que tivessem resolvido esse tipo de salto que em teoria da comunicação se chamaria transdúctil- transdução é o transporte que registra a transformação de, por exemplo, energia térmica em energia mecânica, ou que  pode ser identificada na mudança de escala, como da intracelular para o ambiente pluricelular; do analógico para a identidade. Sem a devida descrição dos procedimentos, o salto resulta de um mistério bastante dramático que sempre culmina no apelo narrativo a Deus ex-machina.

A peculiaridade deste tipo de debate sobre "reacionários" e "revolucionários" implica, no final das contas, numa espécie de regime monopolista que caracteriza muito mais a forma nacional-nacionalista de resolver querelas, sempre culminando numa diversidade autoritária de administração do verbo do que alimentando a diversidade inclusive daqueles que não tem e não querem ter nada a ver com isso; estes, os idiotas que outrora seriam os pagãos cujas religiões são sempre a concretização da última fronteira cuja conversão será feita, se não pelo amor, pelo medo como nos ensinaram com sobras os nossos jesuítas, e os jesuítas dos outros.

Mas esta conversa merece outra consideração sobre uma dimensão algo patriarcalista bastante bem expresso no artigo do de José Pereira Coutinho, a respeito da afirmação de que o conservador não tem que se justificar, e quem deve se justificar é o revolucionário. Ora, se formos levar a sério a idéia estapafúrdia de que existem somente estes dois tipos que conferem identidade à ação política e que os conjuntos "reacionário" e "revolucionário" não são tipificações por analogia, temos um segundo problema relativo à justificação e a premissa do debate público. A de que quem chegou atrasado é o Outro e que as instituições e as formas de ordem já oferecem soluções suficientemente confiáveis para seguirmos adiante. Quem estiver descontente com elas que se mova em se explicar. Não consigo imaginar o número de problemas que esta afirmação oferece, assim como não consigo imaginar que ela seja minimamente suficiente para sugerir os limites de se considerar o que poderia ser um conservador. Mas ao menos três problemas podem ser elencados para termos uma idéia clara de seus limites. Em primeiro lugar, sugere uma dimensão absolutamente tutelar do exercício de poder. Em segundo lugar, trabalha com um regime profético da atividade política, quando se remete ao passado, assim como é debitária de uma noção política bastante, digamos, barroca, para citar José Antonio Maravall. E em terceiro lugar, varre para debaixo do tapete que boa parte das soluções políticas e morais oferecidas são oriundas de um tipo de novidade radical, como a Revelação. Uma coisa de cada vez.

Que me seja permitido recorrer à fórmula da comunidade de sentido. Não fiz nenhuma pesquisa de opinião e para certos assuntos creio ser evidentemente desnecessário saber qual é o perfil estatístico do problema. Vou recorrer ao que entendo como um certo senso comum. Mas não é muito difícil imaginar que a noção tutelar de poder esteja diretamente associada ao que está em discussão com relação à discussão do mérito, por exemplo. De que basta haver esforço equivalente que qualquer pessoa chegaria onde pretende chegar, diz a vulgata da meritocracia de molde american dream. E que não seja contabilizada a realidade logística de se desempenhar esforço fazendo com que haja exemplos de pobres sem que sejam apresentadas dimensões estruturais relativas à pobreza. Assim, o pobre que alçou a uma carreira digna é elevado a exemplo de que é possível chegar lá, vindo a produzir muito mais uma narrativa sobre a Graça do que sobre a justiça, filão muito bem preenchido pelas igrejas neo-pentecostais que são, neste ponto, bastante mais honestas dado que fazem coincidir Graça e Justiça no plano terreno. O pobre bem-sucedido é muito mais um herói do que um cidadão com direito à preguiça, como eu. A tutela está exatamente em determinar por via de uma ética que determina a justeza das ações dos outros em conformidade com estreiteza que caracteriza a justificação das dimensões de domínio exercido sobre os outros Assim, não importa se os critérios meritocráticos sejam absolutamente irreais; se não existem equipamentos urbanos como bibliotecas, sistemas de transporte, saneamento básico e reforma imobiliária que permitam desincumbir o cidadão comum - aquele é é só cidadão - de ser um herói. O conservador não precisa se justificar. Ele tem a situação sob controle sem que, paradoxo, esteja no controle como um comunista teria. Mas como é possível? Por causa da tradição.

Este é um ponto nevrálgico deste tipo de discussão e desta forma de caracterização do conservador, ainda que seja aceitável para definir o reacionário da mesma forma equivocada. A tradição é, não preciso insistir no ponto, um conceito disputado na base da navalhada. É comum conseguirmos identificar nos corredores universitários seus proponentes, em geral com o rosto retalhado. Contudo alguns conseguem manter a figura inalterada senão pelo tempo e destes, cito os que figuram na margem direita do Panteão. Edmund Burke é frequentemente citado como referência. Tocqueville, às vezes mas soa demasiado liberal por problematizar instituições de eficácia garantida como os diversos sistemas prisionais em perspectiva comparada. Michael Oakshott, muito menos presente no índex nacional, contudo, parece oferecer uma régua interessante para compreendermos qual é a questão. Aqui me permito abrir a guarda para ser condenado de forma expressa, dado que vou me utilizar como mediador o comentário de Martin Jay, um notário esquerdopata. Por mais que Oakshott esteja na minha lista de leituras e o problema da experiência como categoria analítica me interesse demasiadamente, minha falta de tempo me jogou aos leões. Azar. Chegamos à segunda objeção.

Oakshott fora professor em Cambridge e na London School of Economics, nascido em 1901 e morto em 1990. Em 1933 publica aquele que será o tratado-alvo destas considerações equivocadas, Experience and Its Modes. O livro é escrito com forte influência hegeliana, nos informa Martin Jay, o que nos leva às considerações pouco discutidas em território nacional, a respeito da experiência segundo o conceito de Erfahrung, e não de Erlebnis, como estamos bastante mais habituados - mesmo que não saibamos a diferença. Estamos falando, portanto, de experiência objetivada (Erfahrung), isto é, aquela que se desdobra do atrito produzido pelo encontro entre consciência e o mundo objetivo - terreno nos qual a sucessão bem-sucedida de nesgas e colisões constitui o cerne do progresso científico e, mais, a experiência da consciência. Peço que o leitor perca sua meia-hora de vida decifrando o que poderia ser isto,  experiência da consciência. Afinal, não é sobre minha ignorância relativa à obra de Hegel que disserto. É sobre minha ignorância acerca do livro de Michael Oakshott.

Experience and its Modes, escreve Martin Jay e seu Songs of Experience, segue o problema proposto por Hegel ao definir uma reflexão concreta entre experiencing e what is experienced. Dito de outra forma, o que experimentamos imediatamente e o que já foi experimentado e que, portanto, tratamos como tal adentrando no terreno da consciência da experiência. E é na relação entre estes dois domínios, para todos os efeitos indissociáveis, para onde a reflexão sempre se dirige. Nenhuma celebração da vida como faria a Lebensphilosophie e tampouco nenhum tipo de margem para considerações de caráter ou marxista, ou pragmático no molde de um James Dewey - nenhuma confusão entre vita contemplativa e vita ativa. Cito a citação de Martin Jay.

"To turn pholosophy into a way of life is at once to have abandoned life and philosophy. Philosophy is not the enhancement of life, it is the denial of life. We must conclude, then, that all attempts whatever to find some prectical justification for philosophical thought and the pursuit of philosophical truth, all attempts to replace life with philosophy by subjecting life to the criticism of philosophy, must be set on one side as misguided."(edição da Cambridge, 1978, página 355)

Toda a inclinação prática da filosofia é reduzida, fenomenologicamente, à dimensão de um racionalismo instrumental gnóstico, como não poderia deixar de ser, que privilegia sua própria experiência sem considerar o acúmulo de experiências que se transformaram naquilo que há para ser conservado, dimensões objetivas que aceitam o mistério que são próprios à experimentação e que, por isso produzem formas de experiência subjugada. A tradição se transforma, através da codificação que privilegia o aprendizado do caráter misterioso da experiência humana, numa forma cumulativa de sequenciamento temporal que é, vale dizer, estrangeiro a muito daquilo que consta como conteúdo a ser preservado. E a manipulação deste conteúdo é prerrogativa daqueles que, de outra forma, são experientes no assunto, o que produz uma concepção suspeita de aristocracia que reitera condições de tutelagem como a forma adequada de condução da vida política dado que a experiência acumulada lhes ensina o mesmo conteúdo que é negado aos inexperientes lógica e historicamente. Quero dizer, não obstante a medida ajuizada de subjugar a própria experiência, segue na direção do subjugo da experiência alheia.

Esta concepção de tradição sugere uma série de questões altamente delicadas, dado que não leva em conta os meios de transmissão da mesma, meios estes jogados no pacote dos mistérios. Não leva em conta, como chama a atenção a voz poética de Clio de Charles Péguy, uma certa miséria da leitura das tragédias gregas em vernáculo por um leitor moderno que, por assim fazer, não acende nem à Grécia, nem à tragédia e tampouco à antiguidade que a fazia viva - lê coisas velhas. Não levam em conta as transmissões trôpegas de conteúdos igualmente delicada porque dissocia conteúdo da justificação dos meios utilizados; a história recente da alfabetização, por exemplo, oferece um debate interessante quando, no primeiro quartel do século XIX a produção de livros de ensino auto-didata sofria a censura severa de não oferecerem como as primeiras palavras do infante as que fizessem remissão ao mistério de Deus e às coisas da única religião (Católica Apostólica Romana); hoje, com a paúra do gasto público que sempre se traduz em cortes na educação prioritariamente, o auto-didatismo a qualquer custo, especialmente se a custo zero, é alçado como um recurso antigo para todos aqueles que quiserem usufruir a meritocracia. Existe também invenção deliberada de analogias travestidas de identidade na conformação da realeza no alto-medievo, extensa e perfeitamente fotografada tanto por Georges Duby quanto por Ernst Kantorowikz com relação à qual remeto o leitor, caso este exista para este texto, em algum momento. Parece que há um nódulo que se chama a tradição que sobreviveu a estas e outras infindáveis vicissitudes e, de forma a ser justificada por via dos mistérios da vida, constitui o cerne da ordem política dado que se remete ao conteúdo das experiências vividas. Resta não perguntar como isto se deu. Afinal, que tipo de pessoa pergunta pelos meios de concretização da vida política?

O mais interessante é que esta concepção de tradição parece delegar ao passado um certo caráter profético - e isto mereceria investigações mais aprofundadas. A remissão ao mistério da vida que Oakshott evidentemente faz, e não o faz só, sugere que a resposta a problemas futuros venham do passado, o que leva muito pouco em conta que o passado fora, por sua vez, um modo do tempo presente entregue ao mar de contingências da vida política e, obviamente, da vida. Dito de outra forma, igualmente tão mal informado quanto nós, salvo pelo acúmulo de experiências que sugerem... progresso? Isto é o que não pode ser. Piadas assim não podem ser feitas, porque violam o pressuposto básico da Revelação como fonte de justificação que, todavia, nenhum conservador precisa oferecer. E aqui chegamos ao cerne do artigo em questão, sobre a dimensão delicada desta mesma justificação a qual o conservador não precisa oferecer, meu terceiro ponto. Afinal, ele é o que já estava antes. Não ele mesmo, mas como representante de uma tradição que sabe aliar como ninguém direito positivo e consuetudinário sem se esquivar da justiça. O conservador não precisa se legitimar, mas espera legitimação de outrem que chega depois mesmo que estivesse lá o tempo todo, este que chegou atrasado e quer sentar na janelinha para roubar a brisa neste bonde quente em um quartier chaud

Sobre isso há uma passagem de Hans Blumenberg em seu The Legitimacy of Modern Age bastante providencial. Que se possa dizer que Blumenberg é teólogo, mas judeu. E este "mas" é altamente positivo, dado que, como preza certo argumento conservador, sempre aparece um judeu para salvar. Eu me agarro neste argumento com paixão, vale dizer, ainda que não exatamente com a Paixão de Cristo. Cito direto do livro, dado que este, eu li:

"Legitimacy becomes a subject of discussion only when it is disputed. The occasion for talk of legitimacy of the modern age does not lie in nhe fact that this age conceives of itself as conforming to reason and as realizing this conformity in the Enlightenment but rather in the syndrome of the assertions that this epochal conformity to reason is nothing but aggression (which fails to understand itself as such) against theology, from which in fact it has a hidden manner derived everything that belong to it."(edição do MIT, 1986:97)

A evocação da gramática do discurso ilegítimo não é outro senão o da identificação do inimigo, uma das tradições mais confusas e complexas do arcabouço da tradição para qual Oakshott se remete. E não somente ele. Utiliza-se de uma justificativa vã da relação entre o lugar de segurança civilizatória, da qual é seu garante, e sugere que todo desafio precisa passar pelo seu crivo numa variação de cidadania derivada, especialmente quando o é, como no caso brasileiro, quando Brasil houver. Peço ao leitor que sossegue, por que não há muito. Há muito. 

Que haja toda uma geração de conservadores que queiram se divorciar das ditaduras que a nobre tradição soube, no devido momento, justificar. Que queiram o maior apartamento possível de tudo o que se deu como se um pequeno engano tivesse ocorrido e que as tais ditaduras às quais se refere João Pereira Coutinho (link) em nada tivessem que responder ao aggiornamento de orientações sobre a ordem e o governo de instituições como a Escola Superior de Guerra.  O caso é que enquanto a fórmula aplicada ao dissenso for a do inimigo a ser convertido ou aterrorizado tiver espaço devidamente justificado, e qualquer coisa que não seja o inimigo seja então uma forma derivada de cidadania que trafega entre os dois tipos de ação política, eu não sei como é que esta nova geração de conservadores conseguiria não se transformar naquilo que ela é todavia: uma máquina de produção de inimigos. Afinal, o termo neo-con já provou designar um grupo bastante entusiasmado com relação a isso. No mundo em que vivo, todo mundo é conservador exceto quem não é, mas todo mundo precisa dizer a quê veio a cada ato público - mesmo que o ato seja privado. Aliás, especialmente neste caso, porque parece que tudo agora é privado, exceto o que não é, assim como são todos revolucionários, especialmente os que não são.



http://exame.abril.com.br/revista-exame/edicoes/1064/noticias/nos-os-de-direita?page=1