Quaisquer restrições quanto à leitura de um
intelectual com um passado nacional-socialista e igualmente anti-semita merece
dois apartes feitos por pelo menos três intelectuais algo insuspeitos – ou pelo
menos suspeitos de outra coisa que não seja nazismo. O primeiro é de Marshall
Sahlins que, ao discutir que relativizar é uma forma de compreensão, ressalta
que não é por sua vez uma forma de advogar – sobre o assunto, vide aforismo Anti-relativismo3 em Esperando
Foucault, Ainda (2004). Assim, se
houver a suspeita de que eu esteja relativizando a relação com alguém cuja
atividade política tenha oferecido oxigênio para o nacional-socialismo alemão,
que esta suspeita cesse. Trata-se exatamente disso, desde que se saiba que o
ato compreensivo não é constituição de defesa. Exatamente, e aqui chegamos ao
segundo intelectual, permite que tenhamos uma perspectiva de inimigo menos
nociva do que a que herdamos da demonologia da modernidade clássica que se
dedica fundamentalmente na ampliação máxima do discurso sobre o patológico
deixando de se dedicar ao esforço ambíguo de aprender com o inimigo. Sobre o
problema é possível encontrar na historiografia de Carlo Ginzburg uma passagem
absolutamente luminar a respeito. Em seu ensaio Mitologia Germânica e Nazismo: sobre um velho livro de Georges Dumézil
(2009), Ginzburg discute sobre a recepção do livro Mythes et dieux des Germains do mesmo Georges Dumézil e de como
Marc Bloch e S. Gunterbrunner acolhem o livro com o mesmo entusiasmo,
ressaltando basicamente as mesmas características. Gunterbrunner, contudo, fala
desde o ponto de vista de alguém que valoriza o patrimônio espiritual
nacional-socialista e, por sua vez, Marc Bloch, mais caloroso na recepção, era
judeu e sua resenha fora publicada em 1940. O caso é que em um artigo de 1983
Arnaldo Momigliano detectara no mesmo livro de Dumézil traços insuspeitos de
simpatia com o nacional-socialismo, coisa que levara ao resenhista da Deutsche Literaturzeitung receber o
livro tão prontamente. Há portanto, uma série de questões a serem postas neste
embaraço da recepção de Dumézil. O desfecho de Ginzburg, no entanto,
interessa-me mais do que o resto do ensaio que, para todos os efeitos, é
excepcional. E é ele que cito aqui, pois defende uma ética de pesquisa que
incorpora com maior delicadeza aquilo que Sahlins defende em seu aforismo: “A distinção entre pesquisa científica e
teses ideologicamente motivadas, entre dados documentais e sua interpretação,
não só é possível como necessária. Ela permite utilizar determinadas pesquisas
numa perspectiva diferente daquela em que foram produzidas. Em certos casos,
porém, aqueles dados documentais, ainda que viciados por opções ideológicas,
foram obtidos também graças a elas.
Separar o joio do trigo só é possível através de uma crítica interna. Se nos
limitássemos, por exemplo, a uma recusa preconcebida de ordem ideológica em
relação às pesquisas que explicam longuíssimas continuidades raciais (Höfler)
ou arquetípicos (Eliade), estaríamos cometendo um grave erro. Isso vale a fortiori para a obra, ainda mais rica
e original, de Dumézil. Ainda mais esquiva, também: a continuidade inconsciente
entre mitos germânicos e aspectos da Alemanha nazista mostrava-se, em Mythes et dieux des Germains, como um
dado, sem remeter à raça nem ao inconsciente coletivo. Nos trabalhos
posteriores, Dumézil insistiu, pelo contrário, na continuidade consciente
daquilo que acabou por chamar de “ideologia”indo-européia das três funções.
Também essa tácita revisão autocrítica sobre um ponto central indica que,
depois de Mythes et dieux des Germains,
Dumézil virou a página.”(op.cit.:206). Levando ainda mais adiante, é
igualmente legítimo ressaltar o próprio desafio que o confronto com o inimigo
sem cair na tentação de prosseguir em seu extermínio ou mesmo da produção de
sua indignidade a qualquer custo. Há em Cultura e Imperialismo de Edward Said – o mesmo
Said que do ponto de vista de Sahlins, advoga desde o relativismo o suficiente
para afirmar que there are some things
that are better left un-Said - uma passagem que evoca algo além do respeito
intelectual. Evoca também o prazer em se deparar com o engenho de alguém que se
mostra digno de admiração, não a despeito da inimizade mas exatamente porque é,
antes de mais nada, seu inimigo: “(...) é extremamente
revigorante e inspirador não só ler o próprio lado, por assim dizer, mas também
entender de que modo um grande artista como Kipling (poucos foram mais imperialistas
do que ele) apresentou a Índia com tamanha habilidade, e como, ao fazer isso,
seu romance Kim não só derivava de
uma longa história da perspectiva anglo-indiana, mas também, à sua revelia,
anunciava que essa perspectiva era insustentável, na medida em que insistia na
crença de que a realidade indiana demandava, e até suplicava, uma tutela
britânica por tempo mais ou menos indeterminado.” (Said, 1995:22).
sexta-feira, 25 de abril de 2014
quinta-feira, 24 de abril de 2014
Notas desde atrás do muro: Os espaços da fé e território como problema de teologia política.
EISENBERG, José. As
missões jesuíticas e o pensamento político moderno: encontros
culturais, aventuras teóricas. UFMG. Belo Horizonte. 2000.
CERTEAU, Michel. Le lieu de l’autre : histoire religieuse et
mystique.
Gallimard/Seuil. Paris. 2005.
6-
O itinerário
de Ignacio que o leva até Paris não é, contudo, é a linha de chegada desta
história e tampouco uma espécie de ponto de fuga. Viveu na capital francesa, a
mesma França cujo exército que lhe valera o ferimento e que viria a feri-lo uma
vez mais, em 1535. Sua estadia no Collège de Montaigu fora adiado uma vez que
dominicanos haviam assumido a direção do mesmo imprimindo o ensino da Summa de Sto. Tomás próprias do ensino
escolástico com relação ao qual Ignacio era avesso. Fora a razão de sua
transferência para o Collège de St. Barb com vistas no estudo do nominalismo
desenvolvidas em Louvain no século anterior, particularmente na teologia de
Jean Gerson – por muito tempo creditado como autor de Imitatio Christi. Foi em St. Barb que conheceu Francisco Xavier e
todo o grupo que mais tarde se tornaria o núcleo fundador da Companhia de
Jesus. Sendo preso mais uma vez, exatamente neste período, que Ignacio fora
preso mais uma vez, exatamente nas vésperas de sua segunda viagem para
Jerusalém. A Inquisição, mais uma vez, o processara por causa dos Exercícios Espirituais.
“Irritado, ele foge para a Espanha, mas não
sem ter combinado com seus companheiros de se encontrarem em Veneza, de onde
partiriam para Jerusalém. Tomou um barco de Barcelona a Gênova , chegando a
Veneza em janeiro de 1536, enquanto seus companheiros partiram a pé de Paris,
chegando à cidade italiana um ano depois. O grupo dispersou-se pela região de
Veneza para aguardar o término do inverno; nas cidades onde se instalaram,
buscavam recrutar outros devotos para a viagem. Combinaram que, se alguém lhes
perguntasse de que organização faziam parte, responderiam que eram da
“Companhia de Jesus”, sendo Cristo seu único superior. Enquanto isso, Inácio
viajaria para Roma para mostrar ao Papa uma versão da Fórmula do Instituto, o
documento fundador da ordem jesuítica. “(Eisenberg, 2000:31)
Independente
de seu conteúdo, a circulação dos Exercícios
Espirituais se encontrava flagrantemente comprometido. A presença frequente
da Inquisição na trajetória do documento e de seu redator faz refletir a marca
ambígua própria das considerações iniciais de Michel de Certeau acerca de dois
aspectos privilegiados por sua historiografia da cristianismo moderna: a
heresia e a mística. O primeiro termo sugere haver uma legibilidade de um conflito social própria do cristianismo em uma
disposição binária desde o papel exercido por intelectuais da Igreja em
conflito próprios à dinâmica da mesma (2009:23-26). A reconstituição dos
procedimentos que narram a heresia desde a acusação conseguem dimensionar a
irrupção dos acontecimentos que não somente produzem conflito, mas alteram a
ordem que desde um ponto de vista doutrinal, sugere um componente perene da
ordem política frequentemente identificada com a expressão dos dogmas. Lido
desde a história da Companhia de Jesus em seus momentos de formação, é difícil
acreditar que quase 500 anos depois o Papa viria a ser, justamente, um jesuíta.
Os séculos
XVI e XVII, a aurora da modernidade igualmente batizada como Modernidade
Clássica narram eventos algo perturbadores. É, ao contrário do que reza a
imaginação comum sobre a Idade Média, o ápice da perseguição às bruxas e
feiticeiras (witchcraze); é o período
em que as investigações sobre demonologia adquirem feições obsessivas muitas
das vezes consideradas de forma muito aproximada com a elaboração do poder
soberano e divino da coroa, como no caso dos escritos de Jean Bodin; é
igualmente o período de maior atividade da Inquisição e quando as execuções
conduzidas, não por ela, mas pelo braço secular vieram a se transformar em
verdadeiros eventos em praça pública; o escolasticismo católico é desafiado
internamente pelo neo-platonismo que culmina em, dentre tantas coisas,
luteranismo; é também o período de consolidação da relação entre Igreja, Estado
e território no qual o controle dos hereges assume novas conformações da mesma
forma em que se dá a paulatina extinção do crime de feitiçaria, feito levado à
cabo em primeiro lugar na França libertina de fins do século XVII, a mesma que
incuba e germina a doutrina fundadora da raison
d’État. Assim, é possível ler cada um dos desafios e ameaças citadas neste
parágrafo como uma forma nova de distúrbio à ordem civil lida na conformação do
direito público, conjunto de leis que interfere diretamente na dinâmica de tudo
aquilo que é consuetudinário. Isto incluirá, seguramente, a relação da Igreja
com a sua tradição e com tudo aquilo que poderá reconhecer como cristandade.
“Difícil e violento, o rearranjo do espaço
religioso em Igrejas ou “partidos” não anda em par somente com uma gestão
política das diferenças; ela introduz em cada um desses grupos a necessidade de
manipular os costumes e crenças em proveito próprio segundo uma reinterpretação
prática das situações organizadas anteriormente segundo outras determinações
vindo então a produzir sua unidade a
partir de dados tradicionais e de procurar os instrumentos intelectuais e os
meios políticos que lhes permitam um novo emprego ou a “correção” de condutas e
pensamentos. A tarefa de educar e o
cuidado com os métodos caracterizam
a atividade de “partidos” religiosos e de todas as novas congregações, cada vez
mais conformadas ao modelo estatal.” (op.cit.:26)
Educação e
metodologia. O período inaugural jesuíta participa, como é possível ver, da
fundação e instituição de algo maior do que a própria Companhia de Jesus. É
possível dizer, ainda que com exagero próprio das caricaturas, que estamos
falando de um capítulo da modernidade em particular em que a instituição
jesuíta é protagonista. É aqui que é possível recuperar uma outra dimensão,
bastante mais difusa, de sua história na medida em que a mesma se torna
indistinta da história do barroco.
terça-feira, 22 de abril de 2014
Notas desde atrás dos muros: os espaços da fé e território como problema de teologia política.
CERTEAU, Michel de.
Le lieu de l’autre : histoire
religieuse et mystique.
Gallimard/Seuil. Paris. 2005.
ECKHART, Mestre. O
Livro da Divina Consolação e outros textos seletos. Vozes.
Petrópolis. 1999.
EISENBERG, José. As
missões jesuíticas e o pensamento político moderno:
encontros
culturais, aventuras teóricas. UFMG. Belo Horizonte. 2000
SCHMITT, Carl. Théologie politique. Gallimard. Paris.
1988.
WILDE, Guillermo. Religión y poder en las misiones guaraníes. Editorial Sb.
Buenos Aires. 2009.
5-
Há que se
perguntar se seria ofensivo tentar medir a dimensão em que a mística jesuíta é,
por fim, o recurso à encenação que antecipa a Autopsicografia de Fernando Pessoa. E de alguma forma é o que
parece apontar o curto ensaio de Michel de Certeau sobre Ignacio de Loyola e
seus Exercícios Espirituais. Não é a
primeira vez que o historiador jesuíta recorre ao expediente da simulação para
compor um quadro acerca da mística. E que o recurso à encenação tem faces
diferentes a depender da escala em que a mesma impõe. Que a administração dos
exercícios do espírito ao que faz o retiro não é a mesma coisa que a
administração das almas na organização das missões – em termos nos quais
organização ressoa no conceito de redução,
isto é, a vida urbana cristã em versão miniatura ou, de outra forma, reduzida
aos traços essenciais – caricatura? Relativo à formação de agrupamentos
característicos das missões guaranis no Paraguay dos século XVII e XVIII:
“La fundación de un pueblo
expresaba, en la visión de los jesuitas, la instauración de un verdadero orden
cristiano. En esa singular visión, la idea de civilidad era intrínseca la de la religión católica. De allí que la
“reducción” fuera básicamente reducción
a vida política y cristiana. Pero el dominio no se ejercería únicamente en
el nivel del urbanismo, sino también en de los cuerpos pues, en última instancia,
la ciudad era una reproducción en escala macro des cuerpo humano y sus partes.
De allí que el uso de los lugares, las vestimentas y posturas corporales fuera
objeto de estricta vigilancia y control (Hespanha, 1994:95). La geografía
visual de los pueblos se ve reforzada por los castigos corporales y la
mortificación de los cuerpos, prácticas que ya aparecen prefiguradas en los Ejercicios Espirituales de Ignacio de
Loyola (Barthes, 1997).” (Wilde,
2009).[1]
A passagem citada do livro de Wilde faz
uma manipulação delicada, digo, põe as mãos num arquivo que de fato se dedica
aos textos que descrevem a administração das missões guaranis no Paraguay, as
meninas dos olhos de Lafitau e outros tantos jesuítas. Assim como Eisenberg
(2000), lê as cartas jesuítas com a finalidade de investigar no detalhe a
imaginação administrativa e seu percurso na própria administração da vida
missionária que, obviamente, inclui as populações guaranis. Mas a manipulação
mais delicada, que Wilde faz desdobrar do trabalho de Barthes sobre Ignacio de
Loyola, sugere uma certa imaginação comum entre a administração da alma de
outrem com a alma própria, fazendo coincidir o governo de si com o governo dos
outros. Este desdobramento confere apressadamente razão à fórmula de Carl
Schmitt (1998) que define secularização como desdobramento dos conceitos
teológicos em teoria moderna de Estado. Sugere, sem considerar a mudança de
escala entre si e outrem, identidade entre os exercícios a despeito da mudança
de escala ao mesmo tempo que, no mesmo espírito em que consideram sem fazer
qualquer menção a força da sugestão de que um documento administrativo é tão
católico quanto o poderia ser um texto místico; ou da mística. E vice-versa.
É temeroso fazê-lo, contudo, a partir de
textos secundários e não a partir da fortuna jesuítica. Contudo, como o que
está em questão é a elaboração e aprofundamento de um problema em questão – o
lugar do outro como um problema de teologia política -, é possível que este
movimento seja válido mesmo que de forma meramente tentativa. E assim é preciso
aprender a medir a distância entre, por exemplo, as cartas jesuíticas e um
documento como os Exercícios Espirituais
de Ignacio de Loyola. O retrato que José Eisenberg (2000) faz do fundador da
Companhia de Jesus merece, talvez, uma leitura mais cuidadosa. Até porque o que
faremos é, por enquanto, uma mirada desde a mirada alheia, uma forma muito fiel
ao espírito jesuíta.
Eisenberg dedica o primeiro capítulo de
seu livro ao noster modus operandi
que tem sua introdução na vida do cavaleiro Iñigo de Oñez y Loyola que, ferido
em 1521 em uma batalha contra os franceses em Pamplona, retirou-se para o
castelo em Loyola em fins de recuperação. Sugestivamente, o seu castelo, quando
e onde leu Vita Christi de Ludolfo da
Saxônia e Flos Sanctorum de Jacobus
de Voragine, sobre a vida de Jesus Cristo e a vida dos santos, respectivamente.
Que seja marcado ser uma leitura que tenha conduzido Ignacio à vida religiosa,
passagem enunciada pelo próprio Ignacio em sua Autobiografia e aceita por Eisenberg sem mais; é pouco razoável que
seja, contudo, uma bibliografia suficiente, ainda que adequada para o tipo de
narrativa de descoberta vocacional. É no ano seguinte que, já no esforço de
desvencilhar das marcas do cavaleiro Iñigo na vida fora da rota de Manresa que
Ignacio lê Imitatio Christi de Thomas
à Kempis, livro que parece emprestar à teologia política o lugar que a mimese
merece. Esta é a cidade em que redigiu seus Exercícios
Espirituais que, não obstante as inspirações já anotadas tem filiação nos
escritos do abade Garcia Cisneros com quem ele havia travado contato no
mosteiro de Montserrat no ano anterior. De cavaleiro a peregrino sem nunca ter
deixado de ser, nem um, nem outro. A viagem à Jerusalém, cidade que lhe recebe
no outono de 1523 reforça isso.
A alcunha de alumbrados aos seguidores de Ignacio por via da leitura e prática
dos exercícios é um capítulo à parte a ser melhor descortinado por leituras
futuras, especialmente pela ressonância que o termo tem com a fortuna dos iluminados da era moderna
particularmente justificável como hipótese tanto pela constância de
intelectuais iluministas formados em redutos jesuítas – como Dennis Diderot –
quanto pela forma pela qual a articulação entre o governo de si e o governo dos
outros se dá como uma espécie de relação serial. Os efeitos propriamente
políticos desta forma de governo de si toma a forma, antes de mais nada, de
perseguição dado o fato de os exercícios oferecerem um desafio ao ministério
dos sacramentos. Ignacio foi encarcerado, vindo a ser absolvido quarenta e dois
dias depois pela Inquisição. Liberto, sai de Alcalá para ir à Salamanca, onde
seria preso mais uma vez.
Michel de Certeau (2009), em L’espace du désir sugere como síntese
algo que pode oferecer algumas das razões de Ignacio ter sido diversas vezes
preso em centros de ortodoxia teológica de forma a ser acolhido somente no
Collège de Montaigu, na Paris de 1528 – onde figuras como Erasmo e Lutero
também cumpriram etapa de formação. Vejamos:
“Esta
“maneira de proceder” é uma maneira de dar lugar (faire place) ao outro. Ela se
inscreve então, ela mesma no processo em cujo ela mesmo fala, a partir do
“princípio” e que, em seu desdobramento total, consiste em seu texto dar lugar
ao “Diretor”; do diretor, dar lugar ao retirante; deste, das lugar ao desejo
que lhe vem desde o Outro. Deste ponto de vista o texto faz aquilo que diz ao
se formar ao se abrir, sendo produto do desejo de outro. É um espaço construído
para este desejo.” (2009:247)
O desejo que
mostra sua forma em uma apresentação algo psicanalítica é desdobramento do volo, ou vontade, volição do texto de
Ignacio. O ensaio de Certeau reitera a relação que o discurso que manifesta a
volição, ou no caso, o desejo pelo Outro como a forma de considera-lo como
princípio fazendo com que aquele que se exercita tenha como epicentro de sua
atividade o destinatário da ação. O que faço aqui, faço com vistas em Deus –
fórmula que parece responder com alguma precisão algumas das prescrições do Livro da Divina Consolação.
O destinatário
da ação implica que a ação cumpre um itinerário. E este itinerário cumpre ser,
por sua vez, o postulado de um “Fundamento” no qual se prevê a premissa do
valor do itinerário sem que o mesmo tenha etapas pré-definidas como verdade substantiva. É, de
outra forma, um esquema de movimento
(op.cit.:244) que parece responder a algumas premissas coreográficas que compõe
a metáfora dramatúrgica que inundara a vida intelectual ibérica no alvorecer da
sua era moderna particular. É, de outra forma, uma partitura cujo primeiro fora para o qual aponta é para fora do
texto que, em si, não contém nada de especial.
“Os Exercícios fornecem somente um conjunto de regras e de práticas relativas às
experiências que não são descritas e tampouco justificadas, que não são introduzidas
no texto cuja representação não se faz em parte alguma pois são exteriores ao
mesmo dada a forma do diálogo oral
entre o instrutor e o retirante, ou da história silenciosa das relações de Deus e seus dois
correspondentes.” (op.cit.:239)
Da orden de proceder à noster modus procedendi há
uma variação pronominal nada pequena. E esta variação parece encenar a
diferença entre os Exercícios Espirituais e as reduções
que, todavia, respondem pelo mesmo apelo jesuíta. Os exercícios ocupam àquele
que se presta ao retiro por quatro semanas, ou quatro atos, nos lembra Michel
de Certeau. O tempo de retiro é composto em topoi,
composições de lugares de toda sorte
– que mais tarde se desdobram nos exercícios mnemônicos como os palácios da
memória eternizados por Matteo Ricci – divididos nas semanas correspondentes.
Um itinerário. Devem haver lugares
tradicionais de prece; cenários
artificiais com motivos de meditação; composições
gestuais; indicações sobre a iluminação de lugares específicos, como a escuridão
da terceira semana e a claridade, na quarta; trajetórias de retorno e reprise; simulações que demandassem ao retirante estivesse em outras disposições
e situações, como de humor ou se morto. Michel de Certeau chama de não-lugar o que me parece, no final das
contas, a ênfase na negação do ali
como dêitico de lugar. Por exemplo, a Espanha que não acolheu os esforços
primeiros de Ignacio de Loyola, ainda que louvassem a fama do cavaleiro Iñigo
que não encontrou outra coisa para ler em seu castelo que não fossem histórias
exemplares.
[1] A bibliografia citada por Guillermo Wilde é
proveniente de Las categorías del político
y de lo jurídico en la época moderna
de António Manuel Hespanha na revista Ius
fugit (3-4) e do livro de Roland Barthes Sade, Fourier, Loyola. O capítulo de Wilde disserta sobre a civilização dos pagãos guaranis, o que de
qualquer forma significa conversão ao cristianismo.
quarta-feira, 2 de abril de 2014
Os espaços da fé e o território como problema de teologia política.
CERTEAU, Michel de. La
Fable Mystique, I: XVIe-XVIIe siècle.
Gallimard. Paris.
1982a.
________________________.
Le lieu de l’autre : histoire
religieuse et mystique.
Gallimard/Seuil. Paris. 2005.
________________________.
La Fable Mystique, II : XVIe-XVIIe
siècle. Gallimard. Paris.
2013.
4-
O argumento
de Michel de Certeau aponta para a afirmação de que o terreno da mística é o da
inconstância da alma selvagem. Seguramente que a menção ao território como conceito constituinte do problema não deve ser
absorvido sem alguma luta. No caso de seguirmos a intuição de Georges Bataille,
a de que a mística deve ser destituída por completo com a finalidade de limar
toda e qualquer forma de autoridade na composição posterior de seu conteúdo – o
que repete a eclesiologia de Genealogia da
Moral, de Friedrich Nietzsche -, a primeira fronteira é a que versa sobre o
interior e o exterior (dedans; dehors). São, assim, coisas muito
diferentes transpirar o êxtase e fazê-lo, de outra forma, pilar da edificação
de outrem. Deixar vazar as dores sem fonte e organiza-las num objeto em que se
dê a comunicação, não da dor, mas da dor
ou mesmo da “dor”. A dor de outrem, ou a dor tornada um problema na forma de um
livro, para todos e para ninguém. A dor que deveras sente, contudo, segue fugaz
e inconstante o suficiente para que não seja o solo da Igreja. O solo e o
fundamento ainda é a palavra erigida em sintaxe. A experiência é, à sua vez,
música.
“Embriaguez da voz e da música escapando da
história e o discurso místico se
constituirá nesta longa série litúrgica, festiva e artística, como o
acúmulo onde se exacerba a diferença entre um texto sem voz (ele não “fala” mais) e de vozes insensatas (elas não
articulam mais a narrativa ortodoxa). Ele se situará precisamente neste
afastamento.” (Certeau, 2013:221)
Não é
difícil sugerir que o discurso místico e toda a operação editorial que se
constitui ao seu redor serve como um canal diplomático entre o que está dentro
e o que está fora, cuja lógica territorial interfere nas relações de troca. Que
se entenda, e aí residem as restrições de Bataille, a troca presente num
determinado evento experimental não garante a reprodução da mesma troca
implicando que o sacrifício com finalidade premeditada não tem qualquer relação
com a graça. Legislar a respeito, portanto, é tema dos mais delicados uma vez
que se infere a dimensão e a constância da interferência da Revelação, assim
como é por sua vez inconstante a experiência da mesma. Mas ainda custa a
clareza da relação entre mística e território. Contudo, o universo jesuíta é
pródigo em encenar a tensão entre administração e experiência – e a forma como
ela consolida, no fim, outras formas de administração e experiência de forma a
administrar a experiência.
Vale notar
que, em prosseguimento à citação, a música não é seu sistema de notação, ainda
que por via dele e seu aprendizado adequado é possível retornar à música ela
mesma, vindo a experimentá-la de novo. Não voltar à mesma experiência daquela
música, problema a ser colocado à parte, mas à música ela mesma em sua forma
reconhecível, levando adiante a hipótese mais humilde de que a segunda execução
é análoga sem ser idêntica à primeira. E que este sistema de notação permite
distinguir quem executa e quem, de uma certa forma, aprecia e, por fim, quem
está algo ausente da constituição da cena – lembrando a profunda relação entre
teatro, barroco e a Companhia de Jesus. Há quem experimenta por ordem da Graça,
privilégio intransferível. Há a rede de notas e retórica em que o registro se
dá de forma que a experiência sobre a qual se cala possa ser simulada em um
outro ambiente. E há aqueles que, fora deste novo ambiente, são da ordem do
selvagem pois não podem tocar e tampouco serem tocados pela experiência
reproduzida pois estão além da fronteira. O místico, ele mesmo um selvagem, não
terá direito a entrar no mesmo ambiente que ajudou a fundar.
Antes de
mais nada, a mística estuda indivíduos. Isolados. Postos no claustro sem
qualquer menção à trajetória que nos permite chegar até ele na forma de sua
simulação tipográfica ou, repetindo Certeau, tatuada no papel (1982a).
Com exceção dos trabalhos de Ernst Troeltsch e Max Weber em The Social Teachings of the Christian
Churches e em Economia e Sociedade,
as considerações sobre o estabelecimento da mística como uma ciência e modo de
enunciação seguem pouco exploradas. Contudo o indivíduo místico, o mesmo que
encanta a literatura com suas infinitas possibilidades de fazer proliferar o
maravilhoso é também posto em uma cadeia discursiva em que a experiência à qual
a escrita remete possa estar sujeita à troca – mais do que meramente
linguística. Assim, a mística opera também por via de escolas e grupos; discípulos e mestres; redes de comunicação e transmissão oral, escrita e
itinerante; genealogias e meios; modelos de organização, como monastérios e
eremitismo; procedimentos de comprovação e reconhecimento de milagres, ascese,
curas; codificação sensorial; e por fim, técnicas de representação e
concentração, para além de uma certa economia da honra em que a discriminação
entre grandes homens e homens de poder possa se dar tanto quanto a produção de
sua coincidência. Não é um objeto fácil de controlar, tão dissocializada e
despolitizada (Certeau, 2013:38-39), pois inconstante ao ponto de precisar de
controle constante. E o que demanda controle constante é, por definição,
inconstante. Selvagem.
Sendo algo
mais concreto, não se trata de uma investigação desamarrada de suas fontes, sem
lugar e sem remissões a acontecimentos. Trata-se da modernidade clássica
francesa e a precipitação de toda uma literatura e um sistema discursivo ao
redor da palavra mística. É neste sentido que o termo fábula , história maravilhosa de veracidade questionável, é
utilizada. Algo como conto maravilhoso
que revela, para além do folclore, muito pouca coisa ou quase nada de uma
população de que sua organização social. Aliás, este é o juízo de Lafitau a
respeito da coincidência entre os Antigos e os Selvagens – coincidência oriunda
de uma certa administração das diferenças que os modernos têm com sua própria
infância.
É um ensaio
sobre o frontispício de Mœurs des sauvages américains comparées aux mœurs
des premiers temps, de Joseph-François Lafitau (1724). No canto
direito do frontispício, uma figura feminina empunha uma pena sentada em uma
escrivaninha enquanto mira um homem mais velho, alado, portando uma foice
acompanhado de dois querubins (génies) portando quatro
caduceus, um em cada mão. Os caduceus são representantes diretos da antiguidade
e dos selvagens americanos. Do lado de fora, cenas da providência tendo como
destaque Adão e Eva mais a serpente – anacronismo indisfarçável, pois já estão
no céu a despeito de tudo. Temos então uma cena e um título. Comparemos um com
o outro, tal qual são comparados Antigos e Selvagens, duas formas da infância
da razão.
A comparação
é, antes de mais nada, uma aproximação. Em termos especificamente espaciais em
que dois ou mais elementos díspares são postos na mesma tábua, quadro ou
discurso como coordenados. Lafitau faz uma investigação propriamente
arqueológica na qual recorre à etnologia como uma forma de testemunhar aquilo
que o elemento retrovisor da documentação historiográfica produz como ponto
cego da coleção do cabinet des curiosités.
A comparação, assim, desarticula a ordem cronológica em favor de um esquema
cuja formalização encaixa (emboîte) simbolicamente (2005:96) os
termos comparados em termos de comparação gerais. No caso, compara-se a
humanidade em seus tempos e feitos de origem.
“A comparação é uma “relação” que joga sobre
outras indefinidamente ao gerar o “sistema” de Lafitau, isto é, “um todo cujas
partes se sustentam por ligações que têm entre si”. O “sistema” se define
exatamente como um texto. Assim cada comparação assume o papel de ser, neste
laboratório, uma “preparação textual” efetuada pelos assistentes do escrivão.
Ela transforma, pouco a pouco, a coleção em texto. Não será nem a
ancestralidade, e tampouco a identidade social dos documentos dos quais trata o
que “sustém” o sistema, mas a “própria relação” estabelecida dentre si –
ancestralidade e identidade. Em princípio, ao inverso da historiografia, ele
não é autorizado pelas peças que cita, isto é, pelo referencial intervindo como
legitimação (é o “real” quem legitima a historiografia, “descrição, narração
das coisas tal como elas são). Ela
não é autorizada que por ele mesmo enquanto “língua” própria ou sistema de relações. Entre a comparação
e a escritura, há continuidade. Uma fabrica a outra.”(Certeau, op.cit.:97)
A cena do
gabinete de curiosidades busca analogias selvagens daquilo que se apresenta
como tal e que cede às mesmas analogias por não ter nada a dizer em sua defesa
e tampouco a respeito de seu lugar. Já está deslocado e devidamente
colecionado, cabendo somente sua forma de ordenação extrínseca estabelecida
pelo tableau comparativo. Aquilo que
os símbolos e instituições que antecedem no tempo a Era Moderna comunicam como
sua origem reduz, e é reduzido àquilo que comunica como analogia com os povos
selvagens que são, não vizinhos, mas antepassados reminiscentes que nada tem a
dizer para os modernos. Mas tem muito a mostrar. São, de outra forma, objetos
de um tempo indizível. Indizível pelo afastamento mas, também indizível porque
o barbarismo é próprio do tempo selvagem. Selvagens são, por definição,
analogias místicas. E místicos são, por analogia, selvagens. Século XVI. Francês.
1724. Lafitau. Jesuíta que ordena seus
figurinos antigas (com os quais veste as personagens do frontispício) como seus confrades vestem à moda da época
os Índios das “reduções” do Paraguay (Certeau, op.cit.:93). Ora, é no
Paraguay que localizamos o ideal pedagógico jesuíta e a configuração acabada
das tensões entre o interior e o exterior que conformam tanto o problema da mística em uma ordem religiosa,
quanto a religião em sua própria forma de organizar um território, isto é, de
operar administração o que vai incluir, evidentemente, a edição dos textos
místicos.
terça-feira, 18 de março de 2014
Século
Na querela dos Antigos e Modernos
e se, como partidos,
os Antigos fossem do Significado
os Modernos, do Significante
e
por si só
Direita e Esquerda não fossem sentido
apesar do desejo de monopólio,
de serem pura preeminência?
e se, como partidos,
os Antigos fossem do Significado
os Modernos, do Significante
e
por si só
Direita e Esquerda não fossem sentido
apesar do desejo de monopólio,
de serem pura preeminência?
Postado por
Refrator de Curvelo (na foto do perfilado, restos da reunião dos Menos que Um)
às
09:52
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terça-feira, 11 de março de 2014
Notas desde atrás do muro: os espaços da fé e território como problema de teologia política.
3-
“Esses “caros desaparecidos” que domesticamos
nas fachadas do pensamento, envidraçados, isolados, maquiados e oferecidos
assim à edificação ou destinados à exemplaridade. E então os vemos escapar de
nossa empreitada. Eles se transformaram em
“selvagens” na medida em que sua vida e obras apareceram mais estreitamente
ligados a um tempo passado. Tal mutação do “objeto” estudado corresponderia
mais adiante à evolução da pesquisa que veio
a ser, pouco a pouco, “histórica”, pois isso que caracteriza um trabalho
como “histórico”, isso que permite dizer que se “faz história” (no sentido em
que a “produzimos” como em uma fábrica de automóveis), não é a aplicação exata
das regras estabelecidas (ainda que este rigor seja necessário). É a operação
que cria um espaço de signos proporcionados a uma ausência; que organiza o
reconhecimento de um passado, não à maneira da possessão presente de mais um
conhecimento, mas sob a forma de um
discurso organizado para uma presença ausente; que, para o tratamento do
material então disperso em nosso tempo ofereça lugar na linguagem e remeter à
morte.” (Certeau, 2005:47)
Não é difícil
encontrar a relação íntima entre os fragmentos de teoria da história de Walter
Benjamim e o tempo saturado de “agora” e a conformação do lugar do outro na história defendida por Michel de Certeau. A vida
mística de Jean-Joseph Surin, exorcista jesuíta responsável pelo caso de Loudun
no século XVII, é reconstituída como a figura de Paul Klee, Angelus Silesius. O silêncio da mística
é posta em par com a acídia, com a empatia com a derrota de uma frente e que,
ainda que derrotada, segue combatente. Se o primeiro excurso se deu às voltas
com a perseguição heresiológica, o segundo movimento tem como alvo o discurso
místico, aquele que diz o indizível e que, respeitando a história da
instituição católica, é aquele que, todo o tempo, é quase herético[1] -
quando não herético integralmente. Não cabendo condenar a condenação, a
historiografia deve zelar para uma dimensão importante, a que pergunta “o que
foi que aconteceu?”. Recuperar a dimensão polêmica da mística, no caso, é abrir
espaço para uma nova articulação dada em um lugar em que a condenação não se dê
restituindo à ação jogada às ruínas uma gama de sentidos possíveis – sua
contingência de um tempo presente.
![]() |
Angelus Silesius, de Paul Klee, a reunião impossível em um outro lugar. |
O caso é que
Surin foi esquartejado. Não fisicamente, como se deu com Urban Grandier.
Surin foi esquartejado em arquivos diversos num percurso editorial que para
merecer a marca de labiríntica seria conceder ao desenho uma marca geométrica
irreal. Não há nada que nos lembre o piso da catedral de Chartres aqui, porque
as linhas são interrompidas, os percursos feitos em saltos e os escritos
dispostos numa ordem que respeita mais o sigilo editorial de diversas gavetas
de guardados do que uma estante temática de uma biblioteca. A unidade é
garantida, mas incomunicável porque não fala a nossa língua, mas a dos anjos. A
história por sua vez dispersa aquilo que de outra forma seria unidade e Michel
de Certeau reuniu por uma década a dispersa editorial que acolhiam os escritos
de Surin vindo a publicar, então, suas correspondências, seus exercícios
espirituais (Guide de la Perfection)
e o registro de suas atividades como exorcista. O trabalho é cuidadosamente
reconstituído no primeiro volume de La
Fable Mystique em que os arquivos e as edições de seus trabalhos são
cuidadosamente elencados na abertura do último capítulo do livro. O que vemos
nesta história, que é também a história da mística em uma versão microcósmica –
ou monadológica – é a história de um homem arruinado, isto é, posto em ruína em
que tudo o que lhe faz restar são escombros de papel redigido. Mas o caso da
mística, assim como o as considerações sobre a heresia, oferecem um conteúdo a
mais nesta história. O discurso místico fará as vezes de fala selvagem, uma das
quais preenchem as lacunas da experiência que a temática do progresso insiste
em anular.
Surin não
será, contudo, um cristão exemplar. Michel de Certeau, quem seguramente conhece
muito bem a economia da exemplaridade tem a diferença histórica em outra conta.
Vê nos cristão de outrora a unidade do cristianismo ainda que ao confrontá-los,
não se reconheça neles. E aqui a mediação da linguagem é, toda ela, um problema
a parte. E especial. Porque se trata da mística que é a arte de dizer escondido
– ou de não dizer, de gaguejar, de transpirar a experiência.
“O problema da linguagem constitui um dos grandes debates literários, filosóficos
e religiosos do período atravessado por Surin. Ele organiza sua obra em uma
dialética da língua (sistema que
definira e ocupa todo o campo do mundo) e da linguagem de Deus (a experiência espiritual que a “língua não pode
exprimir” e que “não pode ser nomeada”). Em Surin não se instaura nenhuma
linguagem acerca da verdade – posta ao lado do que é mundano. Somente um
“estilo”, uma maneira de falar pode
articular sobre a “língua” (esse dado prévio e universal) a “linguagem de Deus”
(um corte): as “feridas” do espírito marcam na língua, progressivamente, seu
estatuto de ser despossuído de seu Outro sem substitui-lo por qualquer outra
coisa que lhe fale diretamente.” (2005:46)
Em outras
palavras, o discurso místico dificilmente disse algo que não seja sua forma de
dizer. Porque, aproximando-o de um jargão epistemológico só se trata de
linguagem positiva quando a linguagem é outra, de uma instância completamente
Outra, Estrangeira em sua forma radical. Quando articulada na língua em que a
história se efetiva, é pura negatividade perfazendo a curva assintótica que
Thomas Csordas[2]
tenta recuperar em suas diversas incursões etnográficas no universo da cura,
tanto carismática quanto xamânica, o ponto no infinito em que a curva da língua
dos homens se cruza com a curva da língua dos anjos num exercício que não se cansa de clamar pelo suporte de William Blake. O trabalho
historiográfico, aqui, não é o de coleta de fontes, mas do exercício criativo de
correlacionar e se relacionar com
aquilo que resta de Outrem. Não sendo um esforço de folclorizar o
tempo alheio, é uma forma de restituir ao presente uma outra fonte passada
fazendo do presente, ele mesmo, uma nova forma de relação.
“Não se pode então reduzir a história à
relação que lhe entretém com o desaparecido. Se ela não é possível sem os “acontecimentos” dos quais trata, ela
resulta ainda mais em um presente. Com relação ao que se passou, passado, supõe
então uma lacuna que é o ato mesmo
de se constituir como existente e pensante, hoje.” (op.cit.49)
O campo da mística
é um campo em que a dimensão da experiência se põe de forma radical porque
intangível. É a expressão do tempo vivido em que nenhuma homogeneidade próprias
às vulgatas do iluminismo, ou mesmo a concepção de tempo profano de Eliade e Guénon
podem aceitar porque a dimensão do acontecimento é um obstáculo para a noção da
continuidade. A primeira frase do14º fragmento da teoria da história de Walter
Benjamim antecipa aquilo que será a raiz do discurso historiográfico de Michel
de Certeau, a de que a história é objeto
de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo
saturado de “agoras” (Benjamim, 1996:229) em que a correlação é a oferta de
um lugar sem que, assim, o historiador fale no lugar de Outrem.
[1] O caso de Mestre Eckhart é ilustrativo. Místico de
primeira grandeza foi alvo de processo inquisitorial em 1326 pelo arcebispo de
Colônia, Henrique de Virneburg. O franciscano condena 126 proposições de autor
de Da divina consolação. A acusação
de heresia nadou no paroxismo próprio da expressão da mística. Eckart vai à
Avignon no ano seguinte apresentar seu protesto. Em 27 de março de 1329 o Papa
João XXII condena 28 das 126 proposições por terem se aproximado demasiadamente
de fabulações vindo a terminar a causa com o seguinte dispositivo: “Nós...
expressamente condenamos e reprovamos os quinze primeiros artigos e os dois
últimos como heréticos e os outros 11 citados, como mal soantes, temerários e suspeitos de heresia, igualmente os
opúsculos do mesmo Eckhart que contenham os referidos artigos e alguns deles.”
(Eckhart, 1999:27, introdução de Leonardo Boff, grifo meu). Ao lermos os escritos
de ciência experimental de Jean-Joseph Surin, vemos que o jesuíta que conduziu
o exorcismo das irmãs ursulinas de Loudun quase teve a mesma sorte.
[2]
http://cilas.ucsd.edu/_files/faculty-cvs/csordas_thomas.pdf
Notas desde atrás do muro: os espaços da fé e o território como problema de teologia política.
2-
Palmira.
Berlin. Paris. Não importa grande coisa se o que resta, quando resta são
ruínas. A Queda da Bastilha deixou, além de parcos tijolos escondidos por vigas
que ergueram a Ópera erguida sobre uma estação de metrô, uma história símbolo
da tomada de poder popular que abre os trabalhos da Revolução Francesa. Berlin,
ensina Paul Virilio em Guerra e Cinema,
fora reformada pela arquitetura nazista para que, ao ser derrubada por
bombardeios dos Aliados contra o Eixo viesse a contar uma certa história de
grandeza – uma arquitetura baseada na grandeza da decadência de Atenas e Roma.
Palmira guarda na voz fantasmática do gênio que visita o narrador de Les Ruines a biografia dos excessos e,
portanto, dos erros dietéticos de uma civilização vindo a contar a história de
todos os equívocos, passados e futuros, da política humana. A lição da história
é que ela é o trato daquilo que resta, o que sobra, em contornos documentais
cujo arranjo não é da outra ordem senão o da ficção – é da ordem do feito.
Fetiche. E que se entenda que em nada tem a ver com o fato, de que por ventura
seja verdade. Tem a ver com o que resta. No caso, resta pouco da salvação e sua
história, a heilgeschichte.
“Conhecemos a história de um autômato
construído de tal modo que podia responder a cada lance de um jogador de um
xadrez com um contralance, que lhe assegurava a vitória. Um fantoche vestido à
turca, com um narguilé na boca, sentava-se diante de um tabuleiro, coloca-o
numa grande mesa. Um sistema de espelhos criava a ilusão de que a mesa era
totalmente visível, em todos os seus pormenores. Na realidade, um anão corcunda
se escondia nela, um mestre no xadrez, que dirigia com cordéis a mão do
fantoche. Podemos imaginar uma contrapartida filosófica desse mecanismo. O
fantoche chamado “materialismo histórico” ganhará sempre. Ele pode enfrentar
qualquer desafio, desde que tome a seu serviço a teologia. Hoje, ela é
reconhecidamente pequena e feia e não ousa mostrar-se.” (Benjamim,
1996:222)[1]
Interessante
notar que Walter Benjamim advoga pela feiúra da teologia e, sendo um
comentarista partidário da ode ao feio de Charles Beaudelaire, acaba por tecer
o seu elogio. O comentário à frase de Rudolf Hermann Lotze, de que é admirável
que mesmo individualistas conseguimos não sentir inveja do futuro parece
retomar as bases do que Ernst Bloch chamará de princípio da esperança em que a salvação se desloca para algo mais
adiante, como felicidade ainda que adiada. A teologia insiste em não abrir mão
de coisas que a fazem falar baixo, no canto da sala. Ela, contudo, segue
sugerindo. Ela orienta. Resta saber se a história que não mais se dedica a
salvação em primeiro plano saberá ainda receber lições para a condução das
almas ou, pelo menos, para seguir ouvindo a sua voz e compreendê-la com
tristeza de quem compadece pela derrota. Acídia.
Compadecer
pela teologia não implica, contudo, em aderir à eclesiologia mas sim em tratar a
história do espírito como uma voz ainda viva, mesmo que soterrada pelo entulhamento
produzido tanto por ela, soerguida em ordens de catedrais, quanto pela delação
e violação dos espaços que outrora foram seus. A revolta armada do braço contra
a cabeça, diria a defesa do Corpus
Mysticum paulino, que faz com que os braços tenham ilusões cerebrais. A
delação, por sua vez, se entulha na forma de progresso, exatamente contra o qual é preciso dar atenção, uma vez
mais, aos rumores que reclamam pela voz dos anjos. Porque o progresso é o braço secular com delírios
de nobreza.
[1]
http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,vagao-fantasma-roda-sem-condutor-em-sao-roque,1139284,0.htm
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