Existe uma
classe de pessoas que é, ela mesma o sinônimo de uma classe de relações. Digo assim,
que existe sem que se esteja seguro de sua definição. Mas imagino que eu possa
dizer desta forma, e que ter amigos não é margem suficiente para dizer algo com
segurança. Inclusive há alguma filosofia que diz que ninguém chama outra pessoa
de amigo de forma impune. Mais do que isso, chamar alguém de amigo é uma forma
velada de evocar o pronome “eu”, de dizer algo e, nisto estar implicado em
qualquer coisa que se tenha dito. De alguma forma, quando chamo alguém de
amigo, faço a exigência de que eu mesmo seja chamado para depor. No final das
contas, por ter começado esta narrativa por uma acusação, e chamar alguém de
amigo significa acusá-lo, isto é, defini-lo à revelia de seu consentimento, acabaria
por ter que me justificar. Precisaria dizer porque alguém é meu amigo. Afinal,
o fazemos para seu diametral oposto, no caso de inimizade.
Numa breve
coleção de casos que fazem de alguém, amigo de outrem, é possível sempre se
prevenir com alguns dramas possíveis que justifiquem a acusação. Alguém é amigo
desde que tomaram um porre numa noite em especial; porque salvou sua vida após
ter engasgado com um caroço de azeitona, e mesmo encontrar um caroço no angu;
porque recebeu alguém com carinho e consideração; porque emprestou uma caneta
na prova final de trigonometria de alguém; porque se envolveram em uma briga de
torcida e foram presos na mesma algema. Mas no caso, Codorna é meu amigo ainda
que eu não me lembre por quê, como foi ou como teria sido diferente. Fosse uma
história, não saberia contar. E, é bom que se entenda, ainda que eu não saiba
dizer como foi possível e qual seqüência de eventos foi produzida para que tudo
viesse à tona, me é possível acusá-lo como amigo sem prejuízos. Pelo visto,
imaginei que deveria ser assim, me veio à mente a mesma idéia que se precipitou
na ponta de meu indicador, e ponto. Ei-lo, meu amigo. Sem contestação. Disso,
as conseqüências. São várias, e todas parecem estar enormemente atreladas a
alguma forma de compromisso afetivo, uma variação característica da expressão
obrigatória de sentimentos. A primeira, e a mais efetiva delas é a
correspondência.
Durante anos,
mesmo após o fim do curso em ciências sociais, mantivemos correspondência
expressa. Um pouco desleixada, em especial se comparado com a que mantive com
outros amigos do período, os mais atinados com alguma justificativa a respeito
do começo da amizade. Afinal, não me lembro de quando Codorna apareceu como
amigo. A questão é que a coisa desandou. A falta de correspondência já havia se
transformado em aliança temporária na partilha de um mesmo abrigo, o que se deu
pouco tempo antes de acusá-lo ser meu amigo. Codorna e eu viemos a dividir o
mesmo teto, nos obrigando a muito mais coisas do que em geral a amizade exige.
Acabamos que nos exigimos cada vez mais, até que chegamos a um limite. A
história que não sei narrar termina em dispersão. Que não se entenda que o
limite foi o dia em que rompemos a chutos e pontapé. Nem de perto isso é um
desafio. Desafio foi quando Codorna chamou todos os moleques da rua no campinho
de areia, traçou uma linha no chão e desafiou a cada um de nós a passar por
ela. Cuspiu no chão, apontou pro pé, fez o ritual inteiro. Imagino que falo por
todos os amigos de Codorna que nos sentimos, de uma forma geral, emasculados
com a cena. Ele tinha ido longe demais.
Confesso que
nunca entendi o salto que ele havia dado, e este talvez tenha me orientado a
buscar lhe escrever com maior repetição. De um leitor de Milan Kundera e pesquisador
da assistência de saúde mental universitária, Codorna se reapresentou no
envolvimento do porte de uma contratação pela FUNAI para trabalhar no Rio
Grande do Sul junto a populações guaranis. Mas, vale dizer, qual a razão de registrar
que sua ida para o sul seja, de alguma forma um salto. Assim, preciso de
estereótipos para me explicar. Se há algo que compete à atividade
antropológica, em especial a que se dedica a produzir e comentar etnografias, é
a apologia da distância. Tudo que é longe, difícil e arriscado soa a ofício
real, a medalha de honra ao mérito. O delírio, especialmente se acompanhado por
uma dose ou outra de ayahuasca, configura o paraíso reconquistado pela
atividade do pesquisador, especialmente se com custo de uma ou duas
infecções de malária ou febre tifóide, três cicatrizes, algumas pinturas
tribais e um nome adquirido por adoção em campo por alguma família falante de
tupi, caribe ou arwak. Pagando na forma da perda da saúde e da orientação
espacial, a disciplina científica da antropologia compõe sua glória de ser e
fazer antropologia no exercício de ir ao longe, o que faz com que a herança dos
missionários católicos soe tão ultrajante na mesma medida em que parece justa.
Missionários, naturalistas, antropólogos dividem, no âmago, a mesma missão
teórica. Ir – por muito tempo -, voltar, contar.
Não suficiente
esta marca, a de que a glória da antropologia está na jornada longa, há uma
barreira interna, digo, de que aqueles que ficam por perto dificilmente fazem o
caminho da roça e, muito menos, da floresta, tão fortemente desestimulada pela
história da Chapeuzinho Vermelho. Existe a classe de antropólogos que estão
para a observação do que está por perto. E se há algo a ser dito hoje, é que há
antropólogos em todos os lugares. Todos os lugares. Shoppings, listas de
e-mail, festas da uva, academias de ginástica, redes sociais e, até mesmo em
lugares insuspeitos como universidades e unidades de atendimento de saúde
mental. Codorna é mestre em antropologia social por ter produzido uma longa
dissertação sobre o sofrimento da depressão em uma universidade do interior
paulista. Fui em sua defesa, vi destilar seus argumentos, me deixei não
convencer por alguns deles. Meses após assistir sua defesa, tenho notícias do salto. Codorna estava no Rio
Grande do Sul trabalhando como contratado da FUNAI. Seu trabalho travava
relações com a população guarani no mesmo estado. Nunca entramos em detalhes sobre
o que fazia, mas o que sabia fora suficiente para me satisfazer.
Tempos depois,
vingado o trauma do falecimento de um amigo em comum, a distância que Codorna
começara a percorrer veio a se tornar intransponível. Ou quase. Foi selecionado
para trabalhar, também em regime de contratação em Altamira, cidade de base do
consórcio Norte Energia na construção da Usina Elétrica de Belo Monte. E aqui,
e espero ser perdoado pela utilização do mesmo recurso que utilizei para
escrever sobre a FUNAI, pois deixarei que a auto-identificação faça as vezes da
apresentação deste consórcio.
“Conheça a Norte Energia
A concessão para a construção da hidrelétrica, no município de Vitória do
Xingu, foi objeto de leilão realizado no dia 20 de abril de 2010. A outorga
coube à Norte Energia S.A por um prazo de 35 anos.
A Norte Energia S. A, composta por empresas estatais e privadas do setor
elétrico, empreiteiras, fundos de pensão e de investimento e empresas
autoprodutoras, firmará contratos de comercialização de energia elétrica no
ambiente regulado, com as concessionárias de distribuição, no montante de R$ 62
bilhões, relativos ao fornecimento de 795 mil MWh.
Para explorar o potencial hidrelétrico, a concessionária recolherá à União,
como pagamento pelo uso de bem público, o valor anual de R$ 16,6 milhões, além
de cerca de R$ 200 milhões que serão pagos à União, ao estado do Pará e aos
municípios impactados, referentes à compensação financeira pela utilização de
recursos hídricos.
Com estimativa de iniciar as operações no dia 31 de dezembro de 2014 e a
comercialização do serviço em fevereiro de 2015, Belo Monte será a maior usina
hidrelétrica 100% brasileira e a terceira maior do mundo. Sua construção deve
gerar cerca de 20 mil empregos no pico das obras.
A UHE de Belo Monte terá capacidade instalada de 11.233,1 MW de potência e
geração anual prevista de 38.790.156 MWh ou 4.571 MW médios e reservatório com área
de 516 km quadrados. A conclusão do empreendimento está prevista para 10 anos,
com início de operação da última máquina em 31.01.2019.
Para compatibilizar os interesses energéticos com a sustentabilidade
ambiental, a área alagada foi diminuída. A usina teve o reservatório reduzido
em relação ao projeto inicial e a área de alagamento diminuiu 60%. Enquanto a
média nacional de áreas alagadas pelas usinas hidrelétricas é de 0,49 km² por
MW instalado, Belo Monte impactará apenas 0,04 km² por MW instalado.
O empreendimento integra o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que
é uma prioridade do governo federal. Sua entrada em ação propiciará mais oferta
de energia e mais segurança para o Sistema Interligado Nacional (SIN), com
melhor aproveitamento das diferenças hidrológicas de cheia e seca entre as
diversas regiões do País.
A Norte Energia S.A não conta com isenções de impostos diferentes daquelas
concedidas às outras usinas ou a qualquer empreendimento do Programa de
Aceleração do Crescimento (PAC) ou daqueles localizados em área de atuação da
Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam).
A Licença Prévia de Belo Monte foi concedida pelo Ibama em 01/02/2010, tendo
como um dos requisitos a realização de audiências públicas as quais foram realizadas
e contaram com a participação de cerca de 5.000 pessoas. Conforme a própria
denominação, esta Licença exige o cumprimento de um conjunto de condicionantes
dentro de prazos estipulados. Adicionalmente, para efeito de obtenção da
Licença de Instalação, os planos socioambientais devem ser detalhados e constar
do Relatório do Projeto Básico Ambiental (PBA).
No caso de Belo Monte, as ações socioambientais propostas no EIA/RIMA foram
consolidadas em Planos (19), Programas (53) e Projetos (58), abrangendo as
áreas de gestão ambiental e institucional, meio físico, meio biótico e meio
socioeconômico. Ressalta-se que grande parte das condicionantes reforçam ou
complementam o conjunto de Planos, Programas e Projetos propostos no EIA/RIMA.
Os benefícios do projeto Belo Monte transcendem à implantação de uma fonte
de geração renovável e econômica para suprir necessidades do Estado do Pará, da
região Norte e do Brasil. A exemplo de outros aproveitamentos hidrelétricos,
existem benefícios associados à preservação ambiental de áreas na bacia
hidrográfica, além do aumento dos indicadores de desenvolvimento humano nos
municípios abrangidos. A inserção regional do projeto UHE Belo Monte vai
alavancar o desenvolvimento na região.
Somente a título de pagamento da Compensação Financeira pela Utilização de
Recursos Hídricos (CFURH), mais conhecida como royalties, a Norte Energia S.A
contribuirá anualmente com cerca de R$ 160 milhões, sendo R$ 70 milhões
destinados ao estado do Pará e outros R$ 88 milhões aos municípios da área de
influência da usina.
Adicionalmente, a UHE Belo Monte está inserida no Plano de Desenvolvimento
Regional Sustentável (PDRS) do Xingu, que faz parte da parceria entre o Governo
Federal e o Governo do Estado do Pará, tendo como objetivo promover o desenvolvimento
sustentável da região, com foco na melhoria da qualidade de vida dos diversos
segmentos sociais, a partir de uma gestão democrática, participativa e
territorializada.
A participação da UHE Belo Monte está associada ao Eixo Temático 2 –
Infraestrutura para o Desenvolvimento/Energia, no qual aportará, segundo o
Edital do Leilão, cerca de R$ 500 milhões.”
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Não gosto de me enxergar como
covarde. Na verdade, se há algo que me dói é reconhecer não somente meus
momentos de recuo, mas também sua quantidade generosa. Já saí de uma cidade com
o rabo entre as pernas e não gostaria de repetir a cena. No entanto, repeti. E
por isso, nunca mais perdoei Belém. Obviamente que isto é, no mais somente um
lamentável vício europeu de condenação de algo que, lamentavelmente não pode
ser o responsável pelo que fez. Ainda assim, essa forma de condenação de toda
uma cidade que não leva em conta nenhum de seus moradores foi a única forma
que tive para reagir contra uma cidade na qual cheguei e da qual parti, na ida e na
volta, na calada da madrugada. Como fazem os covardes, os ladrões e os
sertanejos.
A dois quarteirões do congresso,
me diziam, tome um ônibus. Ainda assim será perigoso, e deverá tomar um táxi
para que esteja garantido. Cinco minutos de caminhada impedidos por um bairro
que nunca soube qual era. Nunca pude dizer grande coisa sobre o Guamá. Na
verdade, nem pequenas coisas senão aquilo que me ajudava a respirar a atmosfera
repressora de sua fama, corroborada pelo cartaz que avisava sobre o problema do
tráfico de órgãos. Dois ou três cidadãos com o branco dos olhos avermelhados
serviriam de amostra para aquilo que se transformou na média – e isto seria a
cidade. Sem mais. Poderia dizer a mesma coisa sobre Guamá quando fizer remissão
ao rio. Por isso, deixarei de me repetir.
De volta a Belém, dois anos
depois. Ainda covarde, chego num vôo que pousa à uma da madrugada. A mesma
sensação eterna de chegar ao litoral, o mormaço úmido de quem sai do
ar-condicionado de um avião, entrega às testemunhas a minha desorientação. Desta vez, sigo para
a Cidade Velha, em muito afastada do bairro de outrora e, ainda assim algumas
das precauções são exaustivamente repetidas. Cautela – e o alvo da cautela é
sempre uma parte invisível da população, praticante de roubos, furtos e outra
sorte de violência. Turista, estrangeiro, tanto faz. Com tanta gente invisível
a única certeza que sempre tinha é de que eu, em minha figura jamais passaria
desapercebido. E isto terá se mostrado real da forma mais banal. Estrangeiro,
turista e visível.
Minha única missão em Belém,
além de ser o portal de chegada aérea no Pará, seria a de esperar o sinal verde de
Codorna. Enquanto voava para lá, ele mesmo estaria em viagem de campo,
visitando alguma aldeia parakanã, araweté, ou sabe-se lá de quem mais, o que
impossibilitaria minha estadia em Altamira. Deveria esperar. Belém seria meu
porto de espera e, por causa disso meu ambiente especulativo sobre os rumos de
minha viagem futura. Afinal, para Altamira por chão, ar ou água? Aos poucos percebi
que Belém estaria, com o perdão da rima, além. Qualquer decisão seria contaminada pelo simples fato de estar lá. Um quarto sem janelas, banheiro
sem chuveiros e a sensação de que tinha atravessado uma membrana qualquer, a
sensação física de fronteira que faria da viagem algum tipo de filme ruim.
Espero que não cheguemos tão longe com tudo isso. Ainda não tinha amanhecido na
Cidade Velha, o que em nada impede já ser tarde demais.
O dia seguinte, reclamou Ana
Paula, recepcionista do hostel, deveria ser regado com as mesmas cautelas de
qualquer lugar. A palavra chave parecia ser evitar.
Pleno domingo no centro da cidade implica significa, no final das contas, que
se tenha muito cuidado. Afinal, as ruas estão vazias. Procure sempre movimento.
Assim, no movimento, após um café da manhã na padaria que depois me
serviria de rotina, segui rumo à Praça da República, onde se encontra o Theatro
da Paz, vizinho do Teatro experimental. Dia de feira de artesanato. Fui além. Segui por toda a Avenida Nazaré
até sua conversão em Magalhães Barata para visitar o museu do Museu Paraense
Emilio Goeldi, o que me pareceu obrigatório, ainda que pudesse ser decepcionante.
Evitei, contudo, todo tipo de encontro e deixei de lado aquilo que mais poderia
ser prezado por um possível leitor, neste exato momento: uma máquina
fotográfica.
Assim, toda a visita foi movida
pelo percurso lento de um leitor. Cheguei ao museu, devidamente cercado por seus muros e mais as centenas de árvores que lhe fazem roda, filtrada na ciranda íntima das onças e pássaros guradados em seu desenho. O museu, como tal, se encontra ao centro e, para não frustrar meu pessimismo, se encontrava vazio pela metade. Passeei pelas amostras de material coletados
por gente da estirpe de Curt Nimuendaju e de Eduardo Galvão, e tive melhor
dimensão do projeto institucional do museu que, como todas as atividades
científicas mais graves do país, se congelaram durante a Primeira República sem
qualquer revogação.
Pela primeira vez desde que a antropologia se tornou minha
profissão, mesmo sem conseguir tirar disso conseqüências mais práticas, assisti
a uma exposição de coleções com algo mais do que mero interesse. Vi na coleção
de tantos indigenistas e antropólogos algo mais grave, ainda que sem conseguir
nomear, apontar ou mesmo intuir o quê. Identificar diferenças por via de peças, sem
me reportar ao meu próprio milieu de
formação, reconhecendo nas máscaras algo mais apurado do que sobrevivências ou
representações de valores serviu de aconchego para o coração sempre egocêntrico
de um estudioso. Que se entenda que, mesmo antropólogo, não faço parte dos
viajantes que tanto trabalham na fixação das glórias da disciplina. Na verdade,
sou daqueles que, à moda da física teórica busca rearticular diferenças no seio
do mais visivelmente doméstico refazendo distâncias curtas em cadeias infinitesimais,
ampliando a figura potencializando diferenças mais banais. Daí o tamanho do meu prazer, o de reconhecer o que não é de minha obrigação. Aí reside a
alegria no florescimento da orientação em um universo estranho.
Infelizmente a lembrança do que vi e reconheci, hoje reside nas peças que não
fotografei porque era melhor evitar. Afinal, em Belém. A cidade poderia, como
da outra vez ficar com tudo. Preferi ceder ao medo e entregar o que tivesse
antes mesmo de consegui-lo.
Desconfio que, a partir daqui perderei o pouco respeito que já tive.