Odiar todas viagens, todos os viajantes. Ressalva antiga que Claude Lévi-Strauss imprime em seu Tristes Trópicos e que contrabandeia uma precaução profilática. Odeio todos os viajantes e suas viagens. A mesma profilaxia que contrabandeada, que vem dentro de uma frase notadamente antipática, revela que todo remédio provém de um veneno; todo veneno provém de um remédio, o que justifica o eterno retorno à filologia grega, pharmákon. Lévi-Strauss, quando se permite ao exercício da manifestação de opiniões pessoais, em geral soa como um velho rabugento. O tipo acaba se tornando inviável para a sensibilidade sempre jovem que rumina na paisagem vigente, na maioria crentes na figura da Terceira Idade, Melhor Idade, e outra forma de plastificação do tempo na forma de cartões de crédito dos bebês chorões formados à base de talco e suco de pêra. É difícil, de uma forma geral ouvir o que uma ressalva mal-humorada tem para oferecer. No meu caso, reconhecidamente nascido com 72 anos de idade, com cavanhaque e rabo-de-cavalo, é nos momentos de rabugice que reconheço em Lévi-Strauss um companheiro de praça, um parceiro de jogos de gamão.
Como reconhecer um viajante? Esta pergunta se relaciona com o parágrafo anterior por via de uma máxima dos debates sobre preconceito racial. Imaginando um debate acalorado entre favoráveis e desfavoráveis às cotas para negros em universidades, o contrário declara não reconhecer raça e que toda política cotista é, por fundamento racista, no que é respondido pelo pró-cotas: “quer saber quem é negro, quem não é? Pergunte a um policial!”. Ignore, peço gentilmente, a questão das cotas em si. É o dispositivo de identificação, persecutório, se quiser, para o quê chamo a atenção. Basta odiar os viajantes e todas as viagens para reconhecê-los, ainda que não com justiça. E isto ocorre especialmente quando o reconhecimento se dá inter-pares. Viajantes, que se detestam, reconhecem-se no primeiro jogo de olhares. Não obstante serem estrangeiros, estranham-se entre si fazendo de todo primeiro contato um exercício necessário de constrangimento. Se é possível aplicar às sensações alguma forma matemática, digamos que é o momento esponencial do ser-estranho.
Ainda assim, e esta é a razão de retomar a frase de Lévi-Strauss, este sujeito que é estranho e que, no limite não tem outro futuro possível senão estranhar-se ainda mais, este mesmo sujeito volta da viagem tomado pela arrogância diagnóstica. Sabe sobre tudo o que viu, anota dois ou três caderninhos, se tanto e consegue dizer como é que vivem por ali, por onde foi, como é aquele lugar, produzindo uma forma de história natural de improviso que nada faz senão apagar os traços que levariam um segundo viajante aos mesmos lugares e pessoas. É desta forma que ao viajar, não se chega a lugar algum. Há quem chame isso de turismo. Mas não é por tecer mais uma frase idosa de tão mal-humorada que redijo esta abertura que, até então nada fala sobre a viagem até a Hiléia, já muito devastada pelo cenário que me levou para Altamira. Não é uma condenação do turismo, ainda que isto tenha lá algum merecimento para tal. O que chamo a atenção é para a arrogância de todos os viajantes que, ainda que de forma inocente, parecem dar conta do que viram, e fazem do relato irresponsável uma sucessão de anedotas que parecem ser algo melhor. Por mais solene e grandiloqüente que eu venha a parecer, é assim que escrevo. Viajei e, reitero, nada do que eu escrevo deve ser lido como algo diferente de uma sucessão arrogante de anedotas de viajantes. De Altamira, do Xingu, dos heróis e vilões com quem travei contato, eu nada sei. No limite, estas são linhas cujo conteúdo deve-se odiar – como fruto de uma viagem, como produção de um viajante – e ao entender que este relato é, antes de tudo, veneno, é que a sua forma terapêutica talvez se manifeste.
Como reconhecer um viajante? Esta pergunta se relaciona com o parágrafo anterior por via de uma máxima dos debates sobre preconceito racial. Imaginando um debate acalorado entre favoráveis e desfavoráveis às cotas para negros em universidades, o contrário declara não reconhecer raça e que toda política cotista é, por fundamento racista, no que é respondido pelo pró-cotas: “quer saber quem é negro, quem não é? Pergunte a um policial!”. Ignore, peço gentilmente, a questão das cotas em si. É o dispositivo de identificação, persecutório, se quiser, para o quê chamo a atenção. Basta odiar os viajantes e todas as viagens para reconhecê-los, ainda que não com justiça. E isto ocorre especialmente quando o reconhecimento se dá inter-pares. Viajantes, que se detestam, reconhecem-se no primeiro jogo de olhares. Não obstante serem estrangeiros, estranham-se entre si fazendo de todo primeiro contato um exercício necessário de constrangimento. Se é possível aplicar às sensações alguma forma matemática, digamos que é o momento esponencial do ser-estranho.
Ainda assim, e esta é a razão de retomar a frase de Lévi-Strauss, este sujeito que é estranho e que, no limite não tem outro futuro possível senão estranhar-se ainda mais, este mesmo sujeito volta da viagem tomado pela arrogância diagnóstica. Sabe sobre tudo o que viu, anota dois ou três caderninhos, se tanto e consegue dizer como é que vivem por ali, por onde foi, como é aquele lugar, produzindo uma forma de história natural de improviso que nada faz senão apagar os traços que levariam um segundo viajante aos mesmos lugares e pessoas. É desta forma que ao viajar, não se chega a lugar algum. Há quem chame isso de turismo. Mas não é por tecer mais uma frase idosa de tão mal-humorada que redijo esta abertura que, até então nada fala sobre a viagem até a Hiléia, já muito devastada pelo cenário que me levou para Altamira. Não é uma condenação do turismo, ainda que isto tenha lá algum merecimento para tal. O que chamo a atenção é para a arrogância de todos os viajantes que, ainda que de forma inocente, parecem dar conta do que viram, e fazem do relato irresponsável uma sucessão de anedotas que parecem ser algo melhor. Por mais solene e grandiloqüente que eu venha a parecer, é assim que escrevo. Viajei e, reitero, nada do que eu escrevo deve ser lido como algo diferente de uma sucessão arrogante de anedotas de viajantes. De Altamira, do Xingu, dos heróis e vilões com quem travei contato, eu nada sei. No limite, estas são linhas cujo conteúdo deve-se odiar – como fruto de uma viagem, como produção de um viajante – e ao entender que este relato é, antes de tudo, veneno, é que a sua forma terapêutica talvez se manifeste.
3 comentários:
"Viajei e, reitero, nada do que eu escrevo deve ser lido como algo diferente de uma sucessão arrogante de anedotas de viajantes." >> Não consigo ver isso em seus escritos :-)
Ju;
A ressalva é, antes de mais nada, ética. Muito do que é lido por aqui pode cair na chave da literatura etnográfica, que pretende dar conta de eventos de forma positiva e, como é do ofício, autoritária. Estou, e tento fazer isso a cada passo, mantendo o tom da escrita no nível adequado, que é o do patético. Estou tentando colocar o narrador em seu devido lugar, nem que seja na porrada.
Em outras palavras, é o etnográfico que não pode acontecer. Não aqui.
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