Há um momento em
que não há mais o que fazer, e pode-se lacrar o tempo com esta frase tanto por
causa de seu término quanto pela exaustão das forças. Forte é o tempo em que um
e outro coincidem. O dia começava a se encerrar em definitivo. Contava as horas
passadas após um almoço já tardio enquanto as tiras de couro das sandálias
sulcavam a pele dos calos do pé, vermelha e irritadiça, ao mesmo tempo em que o
suor imposto pelo calor das ruas loteadas por mangueiras tratava minhas roupas
com impiedade. Recebi, ainda assim no meio do caminho onde reencontrava o
hostel, uma longa indicação daquilo que se espera de um turista, acrescendo à
informação uma dose de otimismo indisfarçável – sugerindo que eu faria a pé o trajeto
desde onde estava até o Mangal das Garças que, confesso, até hoje não sei como
é. O que sei é que é possível encontrar uma rua cuja altura do asfalto há muito
já ultrapassou as medidas da calçada. As margens da rua são valas, e a
topografia pouco usual.
“É pra correr
melhor a chuva” – poderiam ter dito. “É uma questão de respeito. O povo daqui
não entende disso, porque já tá sufocado com os ares da cidade, mas aqui
deixamos a rua correr a chuva. É melhor. Deixamos os valões em Terra Firme e
Guamá, e aqui conseguimos salvar esta rua aqui. Queríamos que não jogassem
lixo, é fato. Mas é melhor deixar a chuva correr em profundidade”.
O deserto em que
havia me envolvido na caminhada, e que cumpria um regime solitário desde minha
partida do hostel nunca me abandonou. A ausência serviu de companhia, a cidade
começou a ser desenhada, e os pontos de encontro reatavam linhas outras dando
luz e som às histórias de outrora, de quando dancei carimbó pela primeira vez
na Casa das Onze Janelas. Festa de fim de congresso, recheada de conversas perdidas
sobre a obra de Gilberto Freyre, o futuro da universidade, a cultura popular, a
eleição da presidente da associação, o gosto ruim da cerveja, a comida cara, as
roupas dos demais, descendo o nível de interesse até o ralo, por onde corre a
água da chuva, as outras águas, e o tema das águas começa a afogar o verbo, a
ponto de se eu não escrever o suficiente e exagerar na tinta, a frase borra, o
texto escoa, e fim. Diluído, o texto corres sempre o risco homeopático de, apesar do efeito seguir na inexistência. E então, recomeça dissolvido num infinito d´água.
Infinito é como
eu chamo o que não sei contar, ou o que não dá pra contar, ou que me afogaria
pelo cansaço. Mas eu nunca havia visto as onze janelas à luz do dia, sozinho,
sem a proteção dos vidros de um táxi. Se à noite a fronteira marcada pelo
cenário suntuoso parecia intransponível, sob a luz do sol me pergunto quem é
que invade esta fortaleza todos os dias e humilha sua imponência, que tem o
tamanho de sua vulnerabilidade sensível, a mesma sensibilidade ao toque que
senti só de olhar o tom ranzinza do chumbo que se comprimia num lado do céu,
que desaguou. Meia hora sob marquise, o mais próximo e íntimo que me fiz do
Museu de Artes, voltando para o hostel com a única finalidade de não ter mais o
que fazer senão me render. Não havia mais o que fazer. Cansado no fim do dia.
Com a chuva, e a
iminência da noite os percursos dentro do casarão se tornaram sensivelmente
povoados. As filas de pessoas que vi na Av. Nazaré, que faziam um exame de
seleção do SUS, ou coisa que o valha, também estavam por ali. Da Bahia ao rio
Grande do Norte, pude cumprimentar com um só “boa noite” cada um de seus
representantes quase sem saber que, sem distorção alguma são todos
infalivelmente paraenses. E assim, e felizmente, e a televisão, a sala com
sofás e o futebol e a conversa efêmera de todos os domingos, quando todos temos
uma história em comum que, num corte seco se acaba num sem mais.
A cena se compôs
muito rapidamente, com os candidatos ao redor da TV, esperando mais alguns
confrades para uma refeição de rua. Todos queimados de sol, embolando os odores
do abafado indisfarçável da cidade, da casa e da sala, do suor, suores antigos
e os da pele, sob o signo da mesma água agressiva que oprime e nos faz
resignar. Melhor não, melhor deixar correr, e corramos nós, os jogadores de
futebol. Minados todos, e mais um se aproxima, o que me fez recorrer a um do you wanna sit? imediatamente. Seguido
do assentimento, apertei as mãos de Yuto Sotozaki, que me disse estar no Brasil
pela segunda vez, e que, apontou para o
monitor de televisão, tinha jogado a Taça São Paulo de Futebol Júnior pelo
Palmeiras, mas abandonou o futebol, no
futebol teria que fazer só uma coisa na vida e queria fazer outras coisas, como
estudar inglês. Veio a se transformar em professor que, foi como começamos uma
jornada ao inferno local, precisava de um tradutor. Do inglês ao português – e
uma cena para filmar. Yuto me apresentou um roteiro minúsculo que traduzi pouco
depois, com o compromisso de levá-lo a uma praia extraordinária que veio a ser
em Cotijuba. Por aqui o diabo não bate à porta, mas Yuto sim. Às 6:30 da manhã
de uma segunda-feira.
Uma
segunda-feira não me é há muitos anos. Os dias também se tornaram uma zona de
repetição, um exercício entre o tédio e a paciência, um aquecimento das
articulações que nunca passa do mesmo desenho. Acordar de manhã é um jogo
enfadonho em que a sensação de repetição, ou pior, de um movimento sem atrito
produz por fim, movimento algum, ou mesmo um movimento que não se converte em
movimento. Inútil. O sabor espesso da saliva guardada entre os dentes cerrados
e a língua semimorta reforça a tese, o sabor, e o tormento do ar parado ao
redor. A tese, já anunciada da inutilidade marca o amargo da saliva dormida e o
odor de coisas velhas traduzidas em repetição por via dos sonhos que nada mais
fazem senão me situaram no absolutamente banal de uma fila de banco, por
exemplo. Os dedos, os braços, os pescoço, cada uma das articulações começa o
dia sem fé, recusando-se aos primeiros movimentos, servindo de uma ampulheta
preguiçosa que trava a cada novo grão revelando que as dimensões não se
comportam entre si, arrastando e suspendendo cada novo momento, até que
finalmente abro os olhos pela primeira vez, pela segunda, pela terceira,
devagar e sem saber o dia, como todo o resto, o que não sei. O futuro dura
muito tempo, exatamente como deixou registrado um dos principais perturbados da
história do marxismo, e esta sina tem muitos desdobramentos, todos eles movidos
pela desesperança, ignorância e, com alguma felicidade, pela resignação ao
tempo inflexível que insiste em não passar, ao menos não segundo a dose de
obediência que se demanda de um cão. O tempo não é um cão.
Um comentário:
muito bom, B., gostei muito do texto, tem que publicar, sim.
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