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8 (segundo intervalo libertino)-
A tensão entre Vico e De Brosses sugerida, que reencena algo que se dá no seio
da obra de Francis Bacon, tem um segundo momento, igualmente proveitoso para a
introdução do problema para o qual me dedico. Diz respeito ao deslizamento
semântico entre o feito e o fato. Seguindo a orientação que o presidente De
Brosses sugere, fetiche é um termo
forjado por nossos comerciantes do Senegal a partir da palavra portuguesa fetisso, isto é, coisa mágica,
encantada, divina ou oriundo dos oráculos; da raíz fatum, fanum, fari (op.cit.:15), exaltando que se trata, antes
de tudo de algo feito, fabricado, postiço e que tem na ação humana a imputação
de sentido. Isto significa que os poderes atribuídos ao fetiche (o fetiche é
causa de algo) é fruto antes da imaginação do que da correta observação da
natureza – como a natureza das pedras, como veremos. O fetiche é então o
primeiro objeto que uma dada nação se presta a consagrar cerimonialmente. O
primeiro exatamente por se reduzir a uma elaboração mais confortável, produzido
de maneira infantil. Uma vez consagrado, o objeto participa de um circuito de
prestações cuja idolatria não faria justiça sequer a dimensão do homem
deificado.
Tal como De Brosses sugere, a relação
entre a
revelação e o
sobrenatural nada mais é do que
preguiçosa. Satisfaz-se com a primeira analogia que a mente examina, e a
ciência não pode tolerar hábitos indolentes, pondo em evidência a ética
protestante que vai além da iconoclastia ao valorizar o exame detalhado como
uma forma de conduta constante no exercício da observação. Em Vico o “fato”
enquanto decorrente da ação humana como coisa feita, ou fetiche - termo que não
dá as caras em
Ciência Nova[1] - em
nada contradiz o que se impõe como conhecimento racionalmente válido. Pois as
formas geométricas, que são
igualmente produtos
do espírito humano, são a via pelas quais as relações entre as coisas são
feitas com o máximo de rigor, o mesmo tipo de rigor que Galileu teria
encontrado no livro da natureza que se escreve por símbolos geométricos
(Daston:1995; Galileu:1999, Popper, 1985). Eis o espírito que estuda a
geometria com a finalidade de conhecer o mundo na condição que é própria à
humanidade. Como o processo se dá por via da linguagem não pode, e nem deve
impedir que a linguagem mesma aconteça segundo seus próprios desígnios,
especialmente os de caráter onomástico, fruto que são da Providência. Não à toa
o projeto de Vico recebe a alcunha de
economia
poética. Que o fato reportado seja feito, imaginado, criado pela ação
humana, nisso não há contradição uma vez que é a condição para qualquer coisa
que se ponha como horizonte do conhecimento humano.
É contra este tipo de itinerário
intelectual que De Brosses se debruça. Entre o enigma e o usual, De Brosses é
adepto do tipo de terapia da linguagem que encontramos em argumentos
savants como nos
Elementos de Filosofia de D’Alembert. Se um termo, uma palavra faz
menção tanto ao trivial quanto ao Divino, é no trivial que reside sua verdade,
dado que nada há no mundo senão o mundo. Todo e qualquer excedente do trivial é
abuso de sentido e contradiz a produção de todas as ideias, que partem do
elementar para o complexo e elevado. É neste tipo de exercício em que cada
passo se dá num território sem atrito, dado que meramente fantasioso, que as
populações bárbaras e seus comentaristas usuais se perdem, perdendo com isso
sua especificidade produzindo a indiferença própria às relações selvagens. O
mundo maravilhoso é, por fim, meramente trivial quando olhado com método que é,
também, sua forma de colonização que, de outra forma não é senão a franja dos
processos de normalização dos espaços de relação pela ampliação dos espaços de
mera natureza que são, por isso, sujeitos à administração humana. Este
movimento, contudo, é fruto de um esforço que, quando datado o momento de
redação de
Du culte de dieux fétiches
usufruía de farta bibliografia e vulgarização, produzindo ecos em instâncias
fundamentais da constituição de espaços modernos de instituição, o que produz
um eco interessante entre a elaboração das instituições modernas com a normalização
da atividade científica de uma forma geral. Com isso quero dizer que o longo
debate sobre ciências normais protagonizado pela historiografia de Lorraine
Daston e seus parceiros (Daston & Park, 2001; Daston & Galison, 2007) chama
a atenção para o complexo disciplinar que constitui a atividade científica
moderna segundo seu exercício pragmático que institui um território que impõe
aos participantes outra sorte de regras e, ao mesmo tempo reconhece outra forma
de objetividade que não a que inaugurara o exercício especulativo mesmo que
seja, como no exemplo de De Brosses, com a finalidade de justificar a
colonização das paisagens selvagens – o que oferece um retrospecto empírico
frutífero para a tensão imanente ao binômio espaços estriados/ espaços lisos de
Deleuze & Guattari (1996). O cientista que começa a observar deve, no final
de seu exercício, ter rompido com o senso-comum de sua formação. Com isso, ele
muda de hábitos produzindo um discurso de especialista, podendo assim
participar de uma comunidade e, portanto, de uma forma de comunicação
[2].
“Em
meados do século XIX, objetividade como coisa era tão nova quanto a
objetividade como palavra. Ao começar em meados do século XIX os homens de
ciência começaram a ficar abertamente incomodados com o novo obstáculo para o
conhecimento: eles mesmos. Seu medo era que seu self subjetivo estivesse
prestes a petrificar, idealizar e, no pior dos casos, regularizar observações
somente para encaixá-las nas expectativas: ver o que se desejaria ver.”(Daston
& Galison, 2007:34)
Esta obsessão do século XIX possui nome,
um conceito para um problema anterior, a saber, os dilemas da observação. Num
trabalho que se dedica às publicações de atlas científicos, como é o caso de
Daston & Galison (2007), o dilema do recolhimento do espécime que fizesse
as vezes de exemplar ou mesmo arquetípico diante das enormes variações de uma
dada espécie; e também a fixação do que seria uma determinada espécie animal; todos
são exemplos determinantes para atividade da observação e investigação da ordem
natural das espécies. O hiato entre os séculos XVII e XIX apontam para uma
mudança importante no que diz respeito aos métodos que afetam, como não poderia
deixar de ser, também a fortuna iconográfica. A subjetividade que caracteriza o
artista romântico, sua capacidade e distinção no trato com as letras, a beleza
com que impingia a figura do espécime desenhado, tudo isso já fez parte da arte
de observação que, em seu primeiro momento acadêmico fez parte das atividades
das Belas Artes, incorporadas ao grau universitário somente durante o período
renascentista.
Ora, se atentarmos para o que De Brosses
chama a atenção veremos que se trata exatamente de sua participação neste mesmo
movimento de negação das afecções mais propriamente subjetivas, ou do espírito,
para fins de manutenção da condução do raciocínio por via do método. Trata-se de advogar em favor de severíssimas
mudanças de hábito de forma a atingir, pouco a pouco, em algum grau, a
impessoalidade. Este movimento se torna particularmente visível quando
contrastamos um determinado estado de arte do século XVIII com o que se move em
fins do século XIX:
“Por
exemplo, em 1866, a Accadémie des Sciences enalteceu as fotografias panorâmicas
dos Alpes produzidas pelo geólogo Aimé Civiale por sua “representação fiel dos
acidentes” da superfície da terra que, em arte seriam deploráveis mas os quais
“bem ao contrário, deveriam ser [o objetivo] para aonde tende a reprodução
científica de objetos.” O self científico do século dezenove fora percebido por
seus contemporâneos como diametralmente oposto ao do self artístico, assim como
as imagens científicas eram constantemente contrastadas com as de caráter
científico.”(Daston & Galison, op.cit.:37).
Se de um lado o contraste relativo à
produção de imagens se dá entre as artes e as ciências que em outro momento já
estiveram na mesma situação nos graus universitários, o que dizer da relação
análoga entre as ciências diante do pensamento dogmático? Se no século XIX é a
subjetividade que parece sofrer com os golpes do método, ou ao menos é quem
ameaça a atividade científica, contra o quê o ceticismo mitigado e distribuído
como atitude inferencial que se contrapõe à teologia e à fé dogmática se
contrapunha? A historiografia na qual me baseio não vacila em declarar: é o
sobrenatural que deve ser anulado como ambiente fenomenológico. É este o
percurso sugerido no balanço entre o sobrenatural, o preterntural e o natural
como regiões que se prestam a acolher não somente eventos que lhe sejam
pertinentes mas também, populações.
Como é de se esperar de uma paisagem
conceitual que ordena coisas, pessoas e animais, e é o caso das ciências que
dependem de taxinomias, os grupos de fenômenos são compostos por casos-limite e
fronteiras. No caso deste balanço tripartite, há um grupo fronteiriço e é a
partir dele que convém retomar a primeira seção do trabalho de De Brosses,
aquela que propõe uma imagem de selvageria como residente da longínqua Nigrícia.
Se há o natural que de forma grosseira aponta para o regular e para o ordinário
– há quem diga mundano; há quem diga o exato oposto, e aí está uma questão; se
o natural é regular e ordinário, o sobrenatural aponta para algo que acontece
como exceção que pode culminar no sublime. Assim, o preternatural serve de
entremeio, ainda extraordinário, cuja significação é imprecisa: três sóis no
céu, gêmeos siameses, um pequeno peixe que consegue parar um navio, a eterna
antipatia entre os lobos e as ovelhas (ou entre cães e gatos). A praeter naturam não exclui a possibilidade de ser, no limite,
um evento inscrito nas possibilidades da natureza em um aspecto que ainda é
oculto. Por seu caráter excepcional, atendem também pela alcunha de
“maravilhas”(wonder).
Vale notar que neste entreposto entre
ciência e religião opera um regime de equivalências importante. Como vimos o
natural, como o absolutamente regular, o que em parte diz respeito à
configuração de um debate abrangente sobre o espaço homogêneo, posto em voga
especialmente por Giordano Bruno e Galileu Galilei, cada um a sua forma. Com
isto, é possível recuperar uma seguinte distinção: o natural é regular da mesma
forma em que o sagrado pode ser compreendido, nos termos de Mircea Eliade, como
a fundação do mundo que cria um
centro na extensão homogênea e infinita
do espaço (1992:22). Oponho assim o natural ao sagrado pela oposição
análoga entre o homogêneo e o heterogêneo que, em termos rigorosamente
iluministas se remete ao mesmo espaço, que é aonde se dá o movimento e onde se
discriminam os corpos; assim não saímos do terreno de De Brosses que tem uma
tendência expansionista indisfarçável.
Ora, se o natural é o terreno da
regularidade, não é difícil entender que as ciências e as artes defendidas por
De Brosses operam fundamentalmente como uma operação profana que tem como
objetivo encontrar regularidades nas formas mais adversas de exceção. Cabe ao philosophe encontrar nas crenças mais
absurdas a chave que lhe ilumina, a forma pela qual, no erro encontra a razão.
É preciso levar até o bárbaro a luz daquilo que ele mesmo porta sem saber. O
custo disso é a eliminação do sobrenatural por via de uma cuidadosa colonização
do preternatural.
O detalhe do primeiro passo dado por De
Brosses, e compõe o complexo comparativo que sugerem estados experimentais
comuns espécie humana, é que seu argumento não trata de nenhum tipo de difusão
– ainda que possa haver. O culto de deuses fetiches toma em muitas situações,
nomes por empréstimo, como veremos. Mas ainda que a contiguidade geográfica
imponha ao argumento uma série de restrições para a especulação, há uma
hipótese de fundo que afirma uma condição geral, a de que toda religião começa
com o fetichismo – assim como a linguagem acontece a partir de uma associação
elementar. A primeira seção do discurso de 1759 não é outra coisa senão uma
longa lista de fetichistas que conta com a presença de, dentre outros,
iroqueses, haitianos, brasileiros, sírios, apalaches, espanhóis, cubanos,
gregos, lapões, ilinois etc. Neste complexo comparativo, De Brosses oferece um
pano de fundo com reatalhos da Religião
dos Selvagens que é, como é possível deduzir, uma religião a despeito dos
religiosos; uma denominação a despeito dos denominados. E, tal como analisada,
a maior proximidade com a natureza selvagem não lhes propicia qualquer vantagem
na história do pensamento que, por consequência significaria desvantagens na
história das instituições humanas:
“La Religion des Sauvages, dit un Missionaire,
ne consiste que dans quelques superstitions dont se berce leur credulité. Comme
leur connoissance se borne à celle des bêtes et aux besoins naturels de la vie,
leur culte ‘a pas non plus d’autres objets. Leurs Charlatans leur donnent à
entendre qu’il y a une espèce de Génie ou de Manitou qui gouverne toutes
choses, qui est le maître de la vie et de la mort, mais ce Génie ou ce Manitou
n’est qu’un oiseau, un animal ou sa peau, ou quelque objet semblable, qu’on
expose à la veneration dans des cabanes, et auquel on sacrifique d’autres
animaux.”(1988:33).
A maior proximidade não sugere outra coisa
senão maior rapidez na produção de analogias e, por isso um campo empírico mais
frágil na correlação entre eventos naturais. A Religião dos Selvagens não faz da alma das bestas algo de natureza
diferente daquela dos homens, chegando mesmo a dotá-las de superioridade.
Confundindo o agente com a ação, ou causa com o efeito, tem em geral um mesmo
termo para fazer menção a um e outro. Não reconhecem nos fetiches a força
anímica que atribui valor às coisas e animais; não reconhecem meros efeitos
oriundos de plantas, atribuindo-lhes poder volitivo de ação. A mitologia
egípcia que ensina terem sido os deuses aqueles que ensinaram os homens a se
portarem segundo sua condição civil seria equivalente à religião grega que
narra peripécias de um semi-deus que combate monstros para se equivaler àqueles
postos no Olimpo.
A investigação de De Brosses acaba por
produzir dois efeitos diferentes. A primeira conduz o argumento para uma escala
em que há equivalência entre os termos de comparação produzindo um espaço
homogêneo dos sentidos. Egípcios e nigrícios são, via de regra, atados a um
modo equivocado de raciocínio que demanda denúncia e, por fim, produz uma
segunda equivalência, que é o segundo efeito da comparação. Os sábios modernos
que lêem muth como algo além de
“história que narra a vida dos mortos ilustres” estaria cometendo o mesmo erro
que os demais selvagens – estes de fato, aqueles de direito. Assim sendo, a
civilização não é o bastante. É preciso saber controlar o entusiasmo. É preciso
desfazer as analogias mais espontâneas em favor de uma investigação meticulosa.
E é preciso começar do mais elementar cuja fonte sempre se reconstitui o
domínio do experimental próprio à teoria do conhecimento. Assim, com o objetivo
de refutar os historiadores que partem da revelação como fonte do saber, é
preciso denunciar a atividade mais elementar de criação de ídolos, a mais baixa
que não sobrevive sequer aos ataques de fetichistas mais sofisticados. Resta
saber como é que se cria, como é que se dá vida a um deus fetiche?
A segunda seção permite que se compreenda
que sorte de prejuízos provém o culto dos deuses fetiches, aprofundando a generalidade
dos mesmos recorrendo em maior detalhe à mitologia indo-européia, e menos aos
relatos de viagem que informaram sua
História
das Navegações em terras Austrais, ou mesmo a seção anterior
. Vale notar que o comentário relativos
à Nigrícia tem como fonte, antes de tudo, um painel reduzidíssimo. Afora as
fontes clássicas que se delimitam antes de mais nada em regiões mediterrâneas
do continente africano, como é exatamente o caso do Egito, De Brosses não
contava com muito mais do que a
Histoire
naturelle du Sénegal, publicado em 1757 por Michel Adanson
[3] e
mais alguns relatos reunidos para fins de publicação sobre o mesmo Senegal no
verbete da
Enciclopédie, escrito por
Conrnélius Pauw, que administra a literatura de viagens produzidas sobre a
Guiné, a Abissínia, e Congo.
No combate contra a sabedoria dos antigos
é exatamente a partir dos exemplos frequentemente emulados – o Egito, a Grécia
e a Roma antigos – que De Brosses se detém com maior detalhe. É preciso
encontrar formas equivalentes de erro para que o culto dos deuses fetiches
possa ser generalizado até o ponto em que sejam isoladas as formas modernas de
fetichismo. Mas é preciso também ter por onde discorrer sobre o tema.
A estratégia utilizada no caso do antigo
Egito resume-se na história antiga produzida na antigüidade, se é que podemos
chamar assim os escritos de Diodoro Sículo. Assim como já o fizera antes, De
Brosses privilegia o testemunho que, não obstante ser de primeira mão, conta
com alguma dose de ceticismo, fazendo algo mais do que relatar o que ouve dos
povos estrangeiros. A credibilidade está em comparar o que se ouve com o que se
vê, o que exige algo mais do testemunho que não pode vir de qualquer um. Deve
ser oriundo de alguém que respeita as regras do decoro científico, ainda que não
participe do mesmo diretamente
[4].
Para tal é preciso desconfiar das classificações impostas pela autoridade dos
antigos para fins de um novo processo de observação e nova classificação à luz
de uma comparação mais extensa feita a partir de eventos coletados ao redor do
globo. O viajante deve ser, para todos os efeitos, uma forma de naturalista das
instituições humanas. Mas se há um critério imprescindível é o fato de Diodoro
ter passado uma temporada entre os egípcios de forma a poder contar o que viu
com os próprios olhos e ouviu com as próprias orelhas, cumprindo alguns dos
critérios relativos à observação qualificada.
A longa passagem que De Brosses utiliza
dos textos de Diodoro disserta sobre a versão que a mitologia egípcia oferece
da origem das instituições humanas, relacionando cada deus a um aspecto da vida
civil, elencando a agricultura, as leis, o comportamento cordato e mesmo as
festividades como elementos oferecidos como dádiva. A lista de instituições
que, segundo Diodoro, os egípcios afirmam ter aprendido com os deuses segue
como tal: o pão de lótus, o cultivo de plantas outrora desconhecida, o
estabelecimento das leis, o banimento da violência, foram ensinados por Isis; a
abolição do canibalismo e a cultura de frutos, o cultivo do vinho e os festejos
ao redor da bebida vieram de Osíris; as regras da linguagem, a instituição dos
nomes, os ritos de culto do sagrado, os princípios da astronomia, música, dança
e exercícios regulares, o cultivo das oliveiras são resultado dos ensinamentos
de Mercúrio
[5]
(sic). De uma forma geral, a edição que De Brosses faz ao citar a passagem de
Diodoro sugere que a função dos deuses no Egito fora a de fazerem dos homens,
homens, isto é, retirá-los da selvageria. Ora, selvageria é atribuir aos deuses
aquilo que é fruto da ação humana, e nisso reside a acusação de De Brosses.
Basta ver o papel que a observação meticulosa poderia desempenhar:
“Observons ici en passant, que si Toth eût
regardé le serpent non comme animal, mais comme un simple emblème de
l’éternité, ainsi qu’on en a depuis usé plusiers fois en le dépeignant en
cercle se mordant la queue, il étoit inutile qu’il employât beaucoup de tems à
observer la nature de ce reptile. »
Toth, tal como descreve Sanchoniaton em
de Phoenicum elementis, repetiria o
esforço de traduzir fatos por via de alegorias. Este modo de agir diante da
realidade implica em antes de mais nada em um conhecimento inútil. Inútil? Para
fins científicos, certamente, mas se mirarmos a finalidade política, o
diagnóstico de De Brosses não poderia ser mais agudo, em muito semelhante aos
exercícios de crítica dos costumes por via das formas bárbaras e orientais que
tem nas
Lèttres perses de
Montesquieu, no
Zadig de Voltaire e
em
Les bijous indiscrètes de Diderot
suas formas mais populares
[6].
Uma vez que a raiz da palavra mythe remonta às narrativas dos mortos
ilustres, a relação entre os deuses fetiches e a autoridade política está desde
a raiz manifesta. O papel dos adivinhos e sacerdotes sugere qual tipo de
autoridade está fundada no fetichismo que é, antes de mais nada o exercício
abstruso e absurdo da razão marcando o que a antropologia social moderna
determina como a função social do sacerdócio em detrimento das categorias
êmicas de classificação. O alvo no absolutismo não poderia ser mais evidente.
Logo no parágrafo anterior à passagem que discute o exercício de adivinhação do
futuro por via das técnicas africanas, De Brosses discute o problema dos homens
deificados e a idolatria implicada; eram o Egito e a Nigrícia as duas formas de
exceção. O fetichismo de base, o mais elementar não opera desde sempre na
idolatria do homem deificado, o que implica em dizer que esta não é uma forma
frequente de adoração, e muito menos originária:
“Mais venons à des faits bien
antérieurs à tout ceci, et qui remontent à la plus haute antiquité dont il y
ait mémoire parmi les peuples Payens. Nous y verrons quelle idée ils avoient
eux-mêmes sur la première origine du cule des astres, des éléments, des
animaux, des plantes, et des pierres. On aura lieu remarquer, no sans quelque
surprise, que plus le temoignage est ancien, plus le fait est présenté d’une
manière simples, naturelle, vraisemblable; et que la première raison qu’on ait
donnée de l’introduction de ce culte, est encore la meilleure et la plus
plausible qui ait jamais été allégué : de sorte qu’elle pourroit suffire,
si sa simplicité, qui ne permet pas d’en faire l’application à tant d’objets
variés d’adoration des peuples sauvages, n’obligeoit d’avoir encore recours à
quelque autre cause plus générale ». (1988 :60-61)
Retomando o argumento e a autoridade de
Sanchoniaton – interpretado por Philo e Biblos, assim como traduzido por
Eusébio, o que já dispõe de uma certa linhagem –, vemos a forma como se dá o
perigo entre conhecimento e política criando um espaço que indiferencia agente
e ação, causa e efeito. É a partir de Sanchoniaton, comentado por Philo, que os
atos litúrgicos são confundidos com eventos naturais, e vice-versa. Os ventos
impetuosos de Tiro atingem o bosque ao ponto das árvores se agitarem produzido
fricção e, por conseguinte, fogo. Os ventos e o fogo são postos em falsa
analogia gerando o tipo de mito que narra eventos de combustão espontânea ou,
no caso, pelos deuses do vento. O mesmo se dá com as pedras untadas, boetyles. O que marca uma situação como
esta é a narrativa fundadora e a autoria primeira das histórias que, se num
primeiro momento servem para fundar a vida em comum, logo mais servem para
estabelecer o poder soberano que, em bases como as de sua fundação, operam por
via do erro, da superstição para sustentar um poder que, à luz da história
natural da humanidade só poderia ser ilegítimo.
O descompasso que destitui a humanidade de
sua mais óbvia dignidade, que é a atividade intelectual diante do mundo
natural, grosseiro e selvagem, perfila uma enormidade de outros exemplos
retirados de Estrabão, Plutarco, Tácito, Pausânias e outros notáveis. Os
exemplos recolhidos a seguir agravam a acusação dado que não são os deuses que
não estão lá uma vez que são postos como fetiches, mas o animais como o
chimpanzé, o babuíno, o crocodilo, a tartaruga, o íbis e o gato que são
divinizados, assim como plantas e legumes, para não dizer das pedras. As pedras
são, no final das contas a prova maior do absurdo porque nelas reside, antes de
mais nada o silêncio e a imobilidade. Não se encontra nela nenhum sinal de
movimento e ela nada diz, nada grita e, no entanto no culto de deuses fetiches
sequer uma forma antropoide é necessária para que ela venha a desempenhar um
papel divino. Atingimos aqui a forma mais baixa de idolatria que serve de
protótipo do argumento de De Brosses, sobre a qual não pesa nenhuma forma de
concretude que não a autoridade da voz que impinge a pedra de alma. A pedra
talhada não precisa sequer ser antropomórfica. Um talhe que a deixe quadrada
pode ser suficiente para produzir a idolatria que é, para todos os efeitos
condenada em mais de um livros do Velho Testamento – desde a Gênese aos livros
dos profetas.
Neste caso é impensável abolir a
trajetória da condenação de um pano de fundo moral de respeito, observância e
penitência sob os ditames da criação. E é assim que, ao sugerir a figura do self científico, Daston & Galison
(2007) fazem menção ao conteúdo moral da ética da observação que começa a tomar
forma em trabalhos como de De Brosses sem conseguirem atentar, contudo, à moral
libertina que lhe é particular, em especial no que tange o âmbito das reformas
jurídicas dos séculos XVII e XVIII. Ainda assim, a disciplina da repetição à
exaustão dos procedimentos, a sujeição ao tédio e ao silêncio e a anulação do
belo como manifestação autoral fazem parte do tipo de mortificação ascética que
caracterizam algumas formas modernas de ascese intramundana, como insiste Max
Weber (2004; parte II, capítulo 1). Na formação de diretrizes de um modo de objetividade
mecânica, cuja característica é o ideal de um mínimo de intervenção para
atingir o máximo de objetividade e que tem seu auge exatamente no século XIX
europeu, o meramente visível e o imediatamente constatado não se prestam à
diligência que as investigações devem se sujeitar. A partir de um naturalista
contemporâneo, Carolus Linnaeus (Carl Linneu), Daston & Galison definem com
parcimônia esta fidelidade à natureza que conduz tanto a investigação quanto a
crítica de De Brosses. Afinal de contas, para além das variações geográficas,
ou de tipos no caso da botânica, é preciso se dessensibilizar diante da
variedade hipnótica da natureza, recorrendo para tanto a uma seleção agressiva
de fontes e espécimes. Se Linneus debate com seus ilustradores ao dizer que há
uma dimensão de negação de si na confecção das ilustrações dos atlas de
história natural que produzia, é por conferir uma certa constância estatística
nas formas que não estão, integralmente em nenhuma delas especificamente
fazendo o sistema classificatório operar por zonas ou regiões de indiferença
que são, todavia, específicas. A operação que elabora a Nigrícia e os modos
selvagens de religião não parecem advir de outro esforço senão deste. Les
peuples on pu se recontrer également sur ces absurdités, ou se les communiquer
les uns aux autres (De Brosses, 1988:95).