FRAZER,
James George. The golden bough: the magic
art (2/13 vol.). Macmillan. 1990 [1913].
HOCART,
Anthony Maurice. Kings and councillors:
an essay in the comparative anatomy of human society. University of Chicago Press.
Chicago.1970.
HUME, David. Investigação
acerca do entendimento humano. Unesp. São Paulo. (1999[1748]).
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O que vemos em Frazer é que a arte da magia repousa em dois ramos. Um a
respeito da prática da magia e outro, sua teoria. Um e outro são pseudo-formas;
pseudo-arte e pseudo-ciência, respectivamente. Afinal, por se tratar de uma
investigação evolucionista, o selvagem é pseudo-civilizado isto é, contém o
civilizado em germe da mesma forma que o civilizado contém o selvagem como ameaça
cuja fronteira está no limite da epiderme. Esta configuração toma forma, como
bem se sabe, nas variações modernas do ceticismo em grande parte incarnada por
David Hume, quem podemos sugerir ser em grande parte um ancestral direto de
James Frazer, inclusive na arte de reconhecer que certas coisas acontecem.
Trata-se da décima sessão de An Enquiry
concerning Human Undesrtanding, que versa sobre os milagres que, antes de
mais nada, são coisas que acontecem. Pas d’événement, pas de miracle parce que
d’abord, le miracle est une chose à voir.
Hume põe em questão o argumento da
presença real do corpo de Cristo no sacramento Cristão, o mesmo corpo que
outrora serviu de analogia para a justificação do Estado na cristandade. O
problema inicial, o mesmo que traça uma espécie de fundação do empirismo
moderno, diz respeito aos relatos fidedignos relativos aos eventos relatados e
a instituição da confiança nos testemunhos. Porque nem sempre se trata de má-fé
do religioso ou do homem do povo, mas de uma profunda desarticulação com relação
aos critérios de descrição e da constância dedicada à observação metódica que
discrimina não somente a longa permanência no sítio que localiza a percepção
como destaca os termos que guiam a observação in loco. Afinal, os apóstolos não são, sob nenhum ponto de vista,
naturalistas.
“Assim,
a evidência que temos para a veracidade da religião cristã é menor que a
evidência para a veracidade de nossos sentidos, porque já não era maior que
esta nem mesmo nos primeiros autores de nossa religião, devendo certamente
diminuir ao passar deles para seus discípulos, e ninguém pode depositar nos
relatos destes tanta confiança no objeto imediato de seus sentidos. Ora, uma
evidência mais frágil jamais pode desfazer uma mais forte, e assim, por mais
que a doutrina da presença real estivesse claramente revelada na escritura, dar
a ela nosso assentimento seria diretamente contrário às regras do raciocínio
correto. Ela contradiz os sentidos, apesar de que nem a escritura, nem a
tradição nas quais se supõe que esteja sustentada trazem consigo tanta
evidência quanto os sentidos, quando consideradas meramente como evidências
exteriores, sem que nossos corações dela tomem conhecimento pela operação
imediata do Espírito Santo.” (Hume, 1999:143-144)
Temos então um exemplo do combate à
superstição a partir de um ponto de partida muito particular, que é o que toma
a religião segundo questões postas pela teoria do conhecimento. Ao contrário do
que propõe a história do direito e, em parte, o tema da secularização como
história política da religião, aqui a religião não aparece como forma forte que
degenera nas formas modernas, mas ao contrário a forma em potencia se
atualizando em planos perfécteis – a perfectibilidade é, aqui, imanente. A
proliferação de milagres em meio à história profana é um problema a ser
resolvido. Cabe a ressalva de que, como todo cético, Hume não considera a
experiência um meio infalível para promover a orientação no mundo. Isto não
impede, contudo, que ele possa elencar uma hierarquia de formas de acesso ao
conhecimento do mundo que é, para todos os efeitos, experimental antes de tudo
que é, antes de mais nada, potencialmente falha. Contudo, ele toma partido
antes da observação do que da observância das leis, o que altera profundamente
o que se pode compreender como estrutura da mediação e, com isso, a forma de se
relacionar com um acontecimento.
“Nem
todos os efeitos seguem-se com igual certeza de suas supostas causas.
Verifica-se que alguns acontecimentos estiveram constantemente conjugados em
todas as épocas e lugares; outros, porém, mostram-se mais variáveis e frustram
algumas vezes nossas expectativas, de tal modo que, em nossos raciocínios
relativos a questões de fato, coexistem todos os graus imagináveis de
confiança, desde a máxima certeza à mais diminuta evidência moral.” (Hume,
1999:145)
Com evidência moral entenda-se,
obviamente, àquilo que a vida religiosa foi reduzida. Com grau de evidência,
por sua vez, compreende-se o regime de probabilidade em que se exercita o
conflito das evidências de forma a estabelecer proporções da repetição da
incidência que relaciona causa e efeito produzindo assim camadas estatísticas
que pesam em favor de uma ou outra versão. Estatística é, convém lembrar, uma
ciência de Estado assim como uma percepção do estado de relações que permite
que o investigador não seja refém da autoridade de um testemunho somente e que
possa se aplicar na coletânea de relatos. E é o regime de probabilidades que
orienta, assim, a investigação daquilo que acontece vindo estabelecer no regime
das causalidades, a forma posta em evidência como a de maior regularidade
guardando assim a dimensão preciosa das regularidades ocultadas da experiência,
seja por pertencerem a ordens infinitesimalmente grandes, infinitesimalmente
pequenas ou radicalmente distintas da experiência adquirida, como no caso do
príncipe indiano que submetido ao calor dos trópicos não acredita na
possibilidade da água congelada, o que é fundamentalmente racional.
Nisso, o milagre. O acontecimento não
somente como exceção da regularidade, o que é meramente o inesperado, mas
também como a suspensão das leis da natureza. Afinal, quais são as chances de
um milagre acontecer de novo? Quais são as probabilidades? A absoluta exceção
do milagre é de tal ordem que se torna impossível instituir a partir dele
qualquer autoridade com vistas no relato porque como acontecimento ele não faz
nada mais do que irradiar como novidade e obrigar ao relato que destaque que,
por fim, ele aconteceu e nada além disso. O efeito fundamental sobre aquele que
o testemunha é o efeito das maravilhas, das mirabilia,
seja porque aconteceram, o que é uma dimensão sempre suspeita dado que depende
do relato, seja porque alguém relata vindo a sofrer suficientes distorções a
ponto de fazer com que todos os testemunhos sejam por fim dignos de descrédito
mostrando que o fantástico e o maravilhoso é antes de mais nada, um erro de
escalonamento quando não o mero exercício de tornar a narrativa algo mais
interessante e se promover com isso. Assim, o relato que poderia pretender
transmitir algo de verdadeiro cede em graus diversos àquilo que é meramente
verossímil, ainda que seja muito pouco provável. Preferindo contar uma boa
história no lugar de algo que se mostre regular, normal e repetitivo, a
narrativa sobre os milagres oferecem uma sorte de ficção que exagera contornos,
excessivamente afetiva e nada preocupada no exame do caso. Todos os olhos na
qualidade do testemunho, naquilo que efetivamente há para ver. É muito difícil
distinguir, assim, a antiguidade fabulosa
de James Frazer dos povos bárbaros particularmente suscetíveis em compartilhar
histórias milagrosas. E talvez não seja necessário.
Que os dois primeiros volumes de O ramo de ouro sejam uma teoria da magia
e que a mesma responde melhor a certas questões de caráter prático do que
teórico, isto é claro. No entanto, o papel que a magia desempenha como um
regime de semelhanças associadas merece tanta atenção porque é um complexo de
associações entre termos assemelhados que parece nos levar a algum lugar em
especial: o sacerdócio de Nemi. Entendendo que se trata da sucessão pelo
assassinato cujas regras de sucessão Frazer se propõe a reconstituir, nada
melhor que estabelecer o paralelo, para todos os efeitos adequado, da história
da religião com o exercício pericial da cena de um crime e chamar o exercício
de “método comparativo”.
O caso que, com poder consideravelmente
menor, as regras de sucessão do sacerdócio Nemi não encontram paralelo na
antiguidade clássica e conseguir explica-las efetivamente demanda uma ginástica
fenomenal não somente porque não se correspondem com qualquer outro costume
antigo como pertencem ao campo de investigação própria da antropologia social
moderna. Trata-se de um costume bárbaro cuja racionalidade está obviamente em
questão. É preciso confiar, contudo, na continuidade da mente humana que serve
como fiador do mecanismo evolutivo que preserva as hipóteses de Frazer cuja
história natural permite que de alguma forma seja possível percorrer a história
ao contrário, voltando ao ponto senão de origem, àquele que permite borrar a
distinção entre selvageria e antiguidade, ambos fonte, imanência e, de alguma
forma, sobrevivência.
“Accordingly, if we can show that
a barbarous custom, like that of the priesthood of Nemi, has existed elsewhere,
we can detect the motives which led to its institution; if we can prove that
these motives have operated widely, perhaps universally, in human society,
producing in varied circumstances a variety of institutions specifically
different but generically alike; if we can show, lastly, that these very
motives, with some of their derivative institutions, were actually at work in
classical antiquity; then we may fairly infer that at a remoter age the same
motives gave birth to the priesthood of Nemi. Such an inference, in default of
direct evidence as to how the priesthood did actually arise, can never amount
demonstration. But will be more or less probable according to the degree of
completeness with which it fulfils the conditions I have indicated. The object
of this book is, by meeting these conditions, to offer a fairly probable
explanation of the priesthood of Nemi.” (Frazer, 1990:10)
O que Frazer sugere fazer é exatamente
trabalhar com o que Anthony Maurice Hocart sugeriu ser o domínio das provas
circunstanciais em seu Kings and
Councillors. É na leitura de Hocart, inclusive, que duas coisas saltam aos
olhos. A primeira, sobre o grau de penetração do paradigma indiciário nesta
forma de administração da prova de forma que a investigação arqueológica que
nos conduz à antiguidade e à selvageria, ao mesmo tempo, se utiliza do aparato
próprio da antropologia forense em que são os rastros de alguém que interessam,
e que nos conduz ao agente e suas intenções – como o será na figuração ao redor
do assassinato do sacerdote de Nime. A segunda diz respeito à necessidade e, ao
mesmo tempo, a precariedade do uso artificial de analogias para o exercício
comparativo em antropologia que se conduz pela variety of institutions specifically diferente but generically alike.
Hocart abre seu livro dissertando sobre as
regras do jogo de seu programa de
pesquisa pautado por uma analogia explícita com a investigação pericial
criminal. E é exatamente a cena de um crime que lhe serve de figura em que se
dispõe do corpo, mas não de testemunhas. O que ele sugere é que as evidências
diretas são superestimadas caso não sejam testemunhas do ato e, ainda assim,
lembremos, réu confesso não elimina a necessidade de investigação pericial. Não
é outra a vitória da biologia ao recusaras evidências diretas e recorrer ao
enorme expediente da evidências circunstanciais que faz da evolução das
espécies a forma de coletar e acolher a enorme diversidade de fatos sem
recorrer à premissa da empiria.
“There is one branch of human
history which has no direct evidence to build on, and no hope of any. That is
comparative philology. No one expects that we shall ever recover documents
containing specimens of that lost speech from which Latin, Greek, Sanskrit, English,
and such languages, are descended. Writing was not adopted by its users till
long after it had split up into languages very distinct from one another. Our
earliest Greek inscriptions hardly go back to 1000 B.C., at the very least a
millennium after this splitting up. This absence of all direct evidence has
proved a blessing in disguise. It has forced linguists to drop the wasteful an
ineffective frontal attack, to which archaeologists are addicted, for a more
decisive and economical flanking movement. They have been driven to the
comparative method.” (Hocart, 1970:15)
O método comparativo persegue divergências
constitutivas da história de seu objeto exatamente porque os rastros que o
mesmo deixa fazem com que ele divirja da primeira impressão coletada. O caminho
que leva até o original – e o tema se torna profundamente atrelado à questão da
mímesis – visa eliminar as diferenças com vistas naquilo que em um primeiro
momento é a regularidade das semelhanças que permitem deduzir, a partir disso,
a forma original que desencadeou todas as variações morfológicas. É a comparação
entre formas que oferecem uma semiótica particular, aguda e, mais uma vez, à
revelia do contexto. É a intensidade da analogia que faz com que o grau de
reincidência de uma forma na outra é que indica haver algo para além da
superfície, como no caso-teste em que Agni é comparado com Hermes (Hocart,
1970:17-19) no qual são tantas as similaridades entre os mitos narrados que
deve haver algo para além da mera aparência – e é aí que se trata de um
exercício de anatomia comparada, e que as narrativas pertencem a um mesmo
gênero porque sua fábula cumpre quase a mesma narrativa. Mais uma vez, generically alike que tem, por fim, uma
dimensão estrutural. O acontecimento é investigado com vistas em sua estrutura
entendida como suas condições de possibilidade, não naquilo ou quem ele
representa. Todos os abusos da história conjectural partem daí. Seus méritos,
idem. Um deles é de não ter aberto mão dos acontecimentos em favor de seus
representantes.
3 comentários:
Olha, sua escrita correu bem mais que minha capacidade de leitura, o que não um elogio a ninguém. Mas o caminho trilhado à la surrealista, como que pegando aquilo que vem pela frente – que, para os leitores, aparece sempre como uma possível surpresa, haja vista que a gente realmente nunca controla para onde vai o texto ou qual referência vai aparecer...–, dá uma volta interessante, que o leva a um outro lugar, distinto do qual partiu, mas não muito distante. São vários textos em um.
Seria, sua série de textos, um esboço de refazer ~alerta de trocadalho~ umA Estrutura dos Mitos de ou textos de formação da disciplina? Me lembrei de um artigo do antigo colega Giumbelli, sobre o Esboço e Mauss e Hubert, onde ele diz que eles mimetizam os mágicos, de uma forma própria e com seus próprios fins, e que por isso o texto deles seria eficaz... isto é, muito lido e relido. A sua série, aqui é distinta desse artigo, mas acho que posso compará-los por certas semelhanças.
Aliás, o exercício de identificação – pela comparação antropológica – do semelhante me parece central no próprio ato de generalização da magia ou da religião sobre a face da terra. Não é isso que o Frazer faz? (leia como uma pergunta mesmo, pura). Na teoria do racional, ao invés do social, ele e outros britânicos parecem ir – no mesmo ato – projetando e identificando magia e religião por todos os lados. E nisso, aliás, e se não estou pensando uma completa besteira, o trabalho dos franceses ajudou em muito também... pois, se onde tem social – onde não tem pra eles? – tem aquelas categorias da religião, mesmo que nas origens. As comparações de todos serviram pra colocar uma similitude em todos os cantos, seja dentro ou fora de contexto.
Já que falei no diabo, vai que aparece o rabo e, antes que isso aconteça, não posso evitar dizer que a sua denegação da citação da Strathern chega a ser engraçada. Mas a denegação é uma forma de dizer o mesmo, tal como a produção de cópias pra finalidade inversa da que se toma como original.
Pra acabar esse tanto de comentário, vou pedir uma sugestão: fico pensando que junto com essas questões que vc colocou, e outras que passaram pela minha cabeça, seja fundamental seguir a pista da própria concepção de tempo que marca aquele momento de produção intelectual (da modernidade anterior àquela criticada pelos pós-modernos). Pois bem, se, junto com sua atenção ao lugar e aos contrastes da empiria e da laicidade e do Estado, na Inglaterra e na França, você fosse falar do tempo e da temporalidade nesses dois países pra tentar tratar desse momento... qual entidade intelectual vc invocaria pro seu texto? Qual seria o próximo autor a surpreender os leitores?
E, se vc teve paciência pra chegar até aqui no texto: obrigadx.
Anônimo;
Como você seguramente já percebeu, não sou um grande escritor. A bem da verdade é visível que sou um escritor ruim que sequer tem em sua defesa a intenção de escrever com a melhor das intenções. Assim, só fico envaidecido em ver que esta pequena jornada confusa tenha gerado um comentário tão extenso e dedicado. Por isso, só, já agradeço.
Não sei se estou fazendo uma busca de caráter estrutural. Não imagino que seja por aí, no que pese reconhecer meu entusiasmo com Claude Lévi-Strauss durante a graduação, o que deixa marcas indeléveis, ou coisa parecida. Acho que no final das contas estou muito mais atento em fazer uma exegese que não responda a ninguém em especial e que trabalhe mais com ressonâncias.Talvez por isso eu me afaste daquilo que Marilyn Strathern diga sobre Frazer, mas nem um pouco daquilo que ela efetivamente busca fazer de uma forma geral. Nisso compreendo que o espírito é bastante este e que se isso for uma forma de buscar uma Estrutura do Mito pessoal - impessoal?- da antropologia, talvez você tenha razão ainda que eu esteja seguro de não ser minha intenção.
O artigo que você cita de Giumbelli eu li há muito tempo e talvez devesse voltar à ele. Mas não acredito que façamos algo tão semelhante, até porque ainda estou no meio de um caminho em que o problema do acontecimento deve receber um investimento significativo, mas veremos no que vai dar.
O tema da generalização para o qual você chama a atenção me é bastante caro e é parte significativa daquilo que tenho escrito, também sobre teoria antropológica, em outro lugar. E nisso, tendo a dizer que você não somente tem razão com relação a Frazer, mas com relação a muitos outros; para não dizer com relação ao empreendimento intelectual que seja. Eu enfatizo que eu tendo a dizer, mas não digo. Porque isso seria generalizar.
A generalização em si não me parece problemática, vale notar. É uma das notas mais importantes de Edmund Leach e que, de uma forma geral, foi muito bem discutida pela mesma Marilyn Strathern em Partial Connections e em outros tantos artigos sobre o problema da escala, da alteração da escala e sobre processos redutores.
Quanto à sua última pergunta, eu tenho que responder que não sei, ainda que eu queira responder algo como Reinhart Koselleck. No caso de eu de fato vir a responder ao que você me pergunta. Mas se a sua pergunta disserta sobre tempo e temporalidade, é porque, desconfio, você já conhecia a resposta.
Mais uma vez, fico envaidecido por ter merecido leitura tão atenta. Espero que possamos seguir com isso e com outras coisas.
Vai aqui um forte abraço.
ERRATA:
em "O artigo que você cita de Giumbelli eu li há muito tempo e talvez devesse voltar à ele. ", ler "voltar a ele".
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